Naturalmente, é na infância que as atividades lúdicas estão mais presentes, pois brincando a criança vai aprendendo e amadurecendo para o universo adulto. Entretanto, todos nós temos uma criança interior que nos faz querer agir com ludicidade, ou seja, brincar, jogar, se divertir, sentir prazer. Quem nunca se pegou recordando a própria infância, e não teve vontade de voltar a ser um menino que jogava bola o dia todo no campinho ou uma menina que brincava de boneca com as amigas?
A vida adulta tem exigências inúmeras. Entretanto, a ludicidade permanece como característica humana, podendo ser identificada em nossos passeios, viagens ou quando nos reunimos com os amigos para “batermos uma bolinha”, nas festas, no teatro, no cinema ou até mesmo quando assistimos à televisão. Algumas pessoas colecionam bonecas, bichos de pelúcia, canetas coloridas, adesivos ou qualquer outra coisa que remete à infância, na tentativa de suprir essa necessidade humana do lúdico, do jogo, da brincadeira e do prazer.
Carl Gustav Jung comenta em seu livro “Memórias, sonhos e reflexões” que todo adulto tem uma criança eterna, que nunca está completa e, por isso, solicita atenção e educação incessantes. Ele afirma que essa “criança eterna” é a parte da personalidade humana que quer se desenvolver.
A rotina da vida, com suas mazelas, estresses e cobranças, muitas vezes, nos faz deixar de lado o lúdico, e com isso muitos perdem o prazer, deixando de ter uma vida plena, como assevera Luckesi (2010): “quando o ser humano age ludicamente, na verdade, ele está vivenciando uma experiência plena”. É preciso garantir espaços para atividades lúdicas em nossa sociedade, uma vez que a presença das brincadeiras, dos jogos e da diversão é considerada fator de qualidade de vida. Dessa forma, o estudo da ludicidade, na sua formação, se torna imprescindível, pois é preciso compreender e aplicar seus princípios teóricos na nossa vida.
Como ponto de partida, tomaremos a definição dada por Luckesi (2010), quando ele afirma que a ludicidade é “aquela que propicia a plenitude da experiência”, significando que quando estamos envolvidos em uma atividade lúdica, enxergamos apenas a atividade e nada mais. Segundo ele, se estivermos, durante uma atividade lúdica divididos com outra coisa, esta atividade deixa de ser lúdica, pois não estaremos verdadeiramente participando dela.
Mas o que exatamente quer dizer “ser lúdica”? Bem, embora originalmente a palavra “lúdica” tenha se derivado do latim ludus e signifique jogo, sua evolução semântica, abrange mais do que apenas o jogar e o brincar, uma vez que a ludicidade acompanhou as pesquisas relacionadas ao próprio desenvolvimento humano.
Durante a atividade lúdica, não é apenas o resultado da atividade que nos importa, mas também a própria ação, o momento vivido. Esse tipo de atividade possibilita à pessoa que a vivencia momentos de encontro com seu “eu interior” e com o outro, o que gera também momentos de autoconhecimento e conhecimento alheio; momentos de cuidar de si e de olhar para o outro; além de momentos de fantasia, de realidade, de ressignificação e percepção.
A ludicidade faz parte da atividade humana e uma de suas principais características é a espontaneidade. Para uma atividade ser considerada lúdica, ela não precisa ser necessariamente um jogo ou uma brincadeira, mas sim gerar prazer. Almeida (2000) destaca que, ao obter prazer com seu trabalho, as pessoas se educam ludicamente, pois integram a mobilização das relações funcionais ao prazer de interiorizar o conhecimento e a expressão de felicidade que se manifesta na interação com os semelhantes.
Sendo assim, podemos dizer que lúdica é toda atividade da qual o ser humano extrai ou sente prazer. A ludicidade é uma atividade ligada a diversas áreas profissionais, inclusive a do lazer, que deve ser planejada e acompanhada para objetivos mais específicos, pois a forma como é conduzida e vivenciada essa atividade é mais importante do que seu tipo.
A ludicidade é uma necessidade intrínseca ao ser humano. Desde nossos momentos primitivos pudemos perceber sua existência. Algumas das atividades dos povos antigos, como a dança, a pesca, a caça, não eram apenas tidas como atividades de sobrevivência, mas também tinham um caráter de divertimento e prazer natural.
Almeida (2000, p. 19) cita como Platão dava muito valor ao esporte, colocando-o em pé de igualdade com a cultura intelectual. Segundo Platão, o esporte tinha uma grande contribuição na formação do caráter e da personalidade do indivíduo. Porém, embora incentivasse os esportes, ele era contra a competição, pois segundo acreditava, esta causava danos à formação das crianças e dos jovens. Além disso, Platão acreditava também, que o ensino da matemática deveria ser feito através de jogos, para que atraísse e despertasse os aprendizes.
Platão já afirmava, desde sua época, que atividades como o esporte contribuíam muito na formação da personalidade e do caráter do indivíduo. Entre povos antigos, os jogos eram usados para que os mais velhos ensinassem aos mais jovens as normas da vida social bem como seus valores e conhecimentos.
Quando a igreja ganhou poder, e o cristianismo começou a ser mais divulgado, os jogos começaram a perder seu valor, uma vez que eram tidos como pagãos e profanos. Brougère (1998) mostra como coube a Tomás de Aquino introduzir no pensamento cristão a questão do jogo ou do lúdico como necessário, mesmo que subordinado: “Procuramos o repouso do espírito através dos jogos, seja em palavras, seja em ações. Portanto, é permitido ao homem sábio e virtuoso propiciar-se esses relaxamentos algumas vezes” (AQUINO apud BROUGÈRE, 1998, p. 28).
O panorama que segue do início do século XVI é bem definido por Almeida (2000) como o florescer da valorização dos jogos e das atividades lúdicas pelos humanistas. Nessa época, os jesuítas começaram a incluir em seus colégios novamente o lúdico, porém essas atividades foram reformuladas. A igreja começou a elaborar regras em latim para essas atividades, que passaram a ser aplicadas nas escolas e aceitas como práticas educativas necessárias à aprendizagem. Almeida (2000) mostra que ainda nesse mesmo século François Rabelais afirmava que até os jogos de cartas e fichas serviriam para o ensino da Geometria e da Aritmética.
François Rabelais afirmava que tudo o que fosse ensinado, deveria ser feito por meio de jogos. O que Almeida ainda expõe em seu livro é a opinião do educador e filósofo Jean-Jacques Rousseau, o qual dizia que a criança só devia aprender através da própria experiência, pois só assim de fato ela aprenderia. Para ele, os nossos sentidos, são instrumentos da inteligência, e devemos cuidar de nosso corpo, para que, estando são, seja mais fácil aprender. Em uma referência à aprendizagem da leitura e da escrita, Rousseau afirma que são necessários melhores métodos para ensinar a ler e a escrever e que o melhor mesmo seria reforçar o desejo de aprender (ROUSSEAU apud ALMEIDA, 2000).
Almeida destaca que o epistemólogo Jean Piaget crê que os jogos sejam enriquecedores no que diz respeito ao desenvolvimento intelectual. Cita ainda que George Snyders recompôs o estudo do jogo como ferramenta pedagógica desde a educação tradicional até os nossos tempos.
A ludicidade e tudo o que a permeia esteve, está e continuará presente em todas as épocas, povos e culturas, formando uma vasta área de conhecimento que associa criação, reflexão, socialização e aprendizagem. Naturalmente, suas manifestações vão se modificando pelas próprias relações humanas em seu contexto histórico, social, cultural e psicológico.
O mundo hoje é extremamente complexo e exige do indivíduo, no nível social, características como: liderança, criatividade, habilidade de solucionar problemas, relações intra e interpessoais, flexibilidade, etc. Se essas características não forem inatas, como poderão ser desenvolvidas nos ambientes sociais mais comuns?
Exatamente por isso a ludicidade é extremamente importante para o ser humano. Ela é a chave para desenvolver tais características! É através dela que se aprende a conviver, a ganhar e perder, a esperar sua vez, lidar com as frustrações, conhecer e explorar o mundo. Ela facilita a convivência entre as pessoas, pois se processa em torno do grupo e das necessidades individuais.
A ludicidade é umas das possibilidades humanas de exploração do mundo, permitindo reelaborar emoções, ligações afetivas e domínio do seu próprio corpo, como descrito por Teixeira (1995). Ele afirma que situações lúdicas são capazes de mobilizar esquemas mentais, além de integrarem as dimensões afetiva, motora e cognitiva da personalidade. Além disso, Teixeira ainda associa a atividade lúdica à atividade artística, reconhecendo-a como um elemento integrador dos vários aspectos da personalidade: “O ser que brinca e joga é, também, o ser que age, sente, pensa, aprende e se desenvolve” (TEIXEIRA, 1995, p. 23).
A presença de atividades lúdicas espontâneas e dirigidas na sociedade em muito contribuíram para o desenvolvimento das habilidades e competências que se exige do homem na contemporaneidade. Esse fato é tão marcante que o filósofo Johan Huizinga escreveu um livro em 1955, chamado “Homo ludens: o jogo como elemento da cultura”, no qual chama o homem de homo ludens em alusão a outras dimensões humanas já conceituadas como o homo sapiens, que se refere à capacidade de raciocínio e o homo faber, que se refere à capacidade de fabricação de objetos. O homo ludens é o homem do jogo, que, para o autor, é uma categoria central para a civilização.
Para finalizar, é interessante destacar um trecho que encontramos na Declaração Universal dos Direitos Humanos a respeito do lúdico: “Toda pessoa tem direito a repouso e lazer, inclusive à limitação razoável das horas de trabalho e férias periódicas remuneradas” (Artigo XXIV).
Outro texto que também merece atenção é a Declaração dos Direitos da Criança, adotada pela Assembleia das Nações Unidas, que reforça a necessidade do lúdico para a criança: “[...] A criança terá ampla oportunidade para brincar e divertir-se, visando os propósitos mesmos da sua educação; a sociedade e as autoridades públicas empenhar-se-ão em promover o gozo deste direito” (artigo 7º). Assim, podemos dizer que o reconhecimento do lazer como uma necessidade humana é um avanço, mas que ainda é preciso garantir as possibilidades de práticas lúdicas que possam assegurar ao homem um desenvolvimento pleno.
O mundo hoje está passando por grandes transformações culturais e sociais. Vivemos em uma sociedade globalizada, que transita por uma revolução tecnológica na qual a comunicação com o mundo todo é possível e rápida. É justamente essa comunicação massiva que transforma nossos hábitos, nossa forma de ver e pensar o mundo, pois quase todos têm acesso à informação, seja através da televisão, do rádio, da internet, ou de qualquer outro meio de comunicação.
No campo da ciência também tivemos uma grande revolução. Além de a humanidade ter encontrado a cura de diversas doenças (que há bem pouco tempo matavam muita gente), também desenvolveu pesquisas e medicamentos que asseguram uma melhor qualidade de vida. A revolução tecnológica na sociedade contemporânea trouxe inúmeros ganhos e facilidades. Mas há quem diga que ela trouxe também problemas, como a sobrecarrega das exigências da vida moderna, que não nos deixa tempo para refletir nossas ações, necessidades e projetos futuros.
Outro grave problema é a crise educacional nos países mais pobres ou em desenvolvimento, onde mesmo com acesso maior à educação, principalmente pelas classes mais baixas, o ensino público, de um modo geral, é extremamente ruim e não prepara a pessoa para a vida nem para o mercado de trabalho. Isso pode ser percebido no relato das empresas que não conseguem contratar pessoas com os perfis necessários, pois o despreparo é muito grande.
Estamos na sociedade do consumo, em que a individualidade é maior a cada dia e temos menos espaços de convivência social. Pode-se enumerar problemas como violência, exclusão social, desemprego, crise ética, problemas ambientais etc. Nesse contexto, é muito importante ressignificar o papel das atividades lúdicas como possibilidade de reflexão e construção da sociedade que almejamos, como nos alerta Philippe Ariès:
em torno dos divertimentos mais naturais, com significado projetivo, como utilização de brinquedos, bonecas, soldadinhos, armas, rodas, que apareciam e desapareciam no decorrer das épocas, representava-se o tipo de valores e concepções que se desejava passar e incutir nas crianças e adolescentes. De um lado, as nações mais célebres, por seus artistas, artesãos, idealistas, propiciavam às crianças muitos brinquedos e divertimentos sadios, educativos, formadores. Outros, porém, passavam pelo pior dos ‘lixos’ que se poderiam oferecer às crianças e aos adolescentes. A sociedade atual não está longe dessa última alternativa. Os brinquedos atuais variam entre brados de guerra, mortes, combates, prazer, consumo utilizados pelas crianças, passando pelos jogos eletrônicos utilizados pelos adolescentes e atingindo os brinquedos eróticos e jogos nas estrelas utilizados pelos adultos. Neles está imbuído o desejo de destruir, alienar e consumir (ARIÈS apud ALMEIDA, 2000, p. 38-39).
A ludicidade é extremamente importante, pois trabalha o homem como um todo, tocando suas diversas dimensões: afetiva, cognitiva, física e social. O ser humano não é fragmentado, existindo uma visão holística dele no mundo lúdico. Para fins de estudo, buscaremos caracterizar cada uma dessas dimensões. Embora estudemos cada uma das dimensões do homem, é importante ressaltar que elas não existem isoladamente, elas se completam no indivíduo de modo holístico, integral e complexo.
Dimensão afetiva
A dimensão afetiva do ser humano refere-se às emoções e aos sentimentos dele. Atualmente, por meio de várias linhas de pesquisa, podemos crer que as crianças que hoje brincam serão, amanhã, adultos mais ajustados e preparados para a vida, pois é brincando que se descobre como enfrentar situações de medo, dor, angústia, alegria ou ansiedade. O adulto também trabalha suas emoções por meio das atividades lúdicas, liberando seu estresse, suas frustrações e construindo novas possibilidades diante dos desafios que se apresentam no universo lúdico. É por isso que torcemos por um time, contamos piadas, assistimos a filmes, jogamos cartas, ouvimos música, etc.
Nesses momentos, nossas emoções são colocadas em cena, provocadas, ampliadas ou minimizadas e até mesmo modificadas. Segundo a teoria de Henri Wallon, as emoções dependem na verdade da organização dos espaços para se manifestarem por meio do sincretismo da criança, que é fator determinante para o desenvolvimento intelectual. O lúdico nesse caso vai atuar, e muito, propiciando justamente esses espaços oportunos.
As teorias de Piaget que abordam as dimensões afetivas são amplamente estudadas e interpretadas por diversos pesquisadores da área. Arantes (2003) concatena as ideias de Piaget sobre a interdependência da inteligência e da afetividade no pressuposto de que não existe conduta unicamente afetiva ou unicamente cognitiva; de que a afetividade interfere constantemente no funcionamento da inteligência; e de que a afetividade não altera as estruturas da inteligência, ela é apenas o elemento motivador.
Dimensão cognitiva
Primeiramente, devemos entender a cognição como a capacidade de aprender envolvendo estruturas cerebrais como memória, raciocínio lógico e percepção. Assim, na dimensão cognitiva, o indivíduo é o sujeito do conhecimento ao assimilar e processar as informações.
Vygotsky também é citado por Arantes quando ela menciona a ideia de que o desenvolvimento cognitivo é interno e contínuo. Vygotsky (apud ARANTES, 2003) impera que para o desenvolvimento ocorrer naturalmente e de forma saudável, é necessário que a criança seja constantemente estimulada através de percepções sensoriais, motoras e afetivas. Por isso os estímulos sensoriais são fundamentais para o desenvolvimento e aprendizagem. Naturalmente, essa estimulação pode acontecer de muitas formas e a principal delas é através de brincadeiras e brinquedos, ou seja, através do lúdico.
Dimensão física
No desenvolvimento físico há a tomada de consciência do corpo, que contribui para que se tenha destreza, equilíbrio e um bom conceito de si mesmo. Por isso, os problemas motores ou físicos podem comprometer o desenvolvimento intelectual. A área que tem como objeto de estudo o homem através do seu corpo em movimento e em relação ao seu mundo interno e externo é a psicomotricidade.
É no corpo que se originam as aquisições cognitivas, afetivas e orgânicas através do movimento, do intelecto e do afeto. As atividades lúdicas ajudam o indivíduo a organizar seu corpo e ter experiências motoras essenciais para outras aprendizagens como a escrita.
Dimensão social
No aspecto social, o homem é um ser coletivo, que não vive isolado, que influencia e é influenciado por outras pessoas. A dimensão social abraça ainda mais o outro, através da inclusão e da cidadania. O nosso espaço é construído também por meio da interação com o próximo.
O universo lúdico oferece ao ser humano em qualquer fase de sua vida uma ampla estrutura ansiosa pela consciência de si, repleta de imaginação, criação, motivação para novos projetos e oportunidade de interação com o outro, que são processos fundamentais na constituição de um sujeito harmonioso, equilibrado e feliz.
Após observar a importância da ludicidade para o desenvolvimento da criança, há que se lembrar que ela também é importante para quem já está grandinho.
O adulto é capaz de trabalhar suas emoções por meio das atividades lúdicas, liberando seu estresse, suas frustrações e construindo novas possibilidades diante dos desafios que se apresentam no universo lúdico.
Referências:
ALMEIDA, Paulo Nunes de. Educação lúdica: técnicas e jogos pedagógicos. São Paulo: Edições Loyola, 2000.
ARANTES, Valéria Amorim (Org.). Afetividade na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus, 2003.
BROUGÈRE, Gilles. Jogo e educação . São Paulo: Artmed, 1998.
JUNG, C. G. Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
LUCKESI, Cipriano. Ludicidade e atividades lúdicas: uma abordagem a partir da experiência interna.
TEIXEIRA, C. E. J. A Ludicidade na escola. São Paulo: Loyola, 1995.
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