8 de jul. de 2013

ANÁLISE ÉTICA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL

ANÁLISE ÉTICA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL

Joenildo Fonseca Leite [1]



Apresentação

Este trabalho se propõe a discorrer acerca das propostas de reforma gerencial que a administração pública no Brasil tem acolhido. A atuação do Estado no mundo globalizado exige, cada vez mais, a existência de uma estrutura administrativa apoiada em organizações públicas, que sejam capazes de realizar as múltiplas tarefas que as demandas da sociedade impõem aos governantes.
Para que se proponha reformar a administração pública, é preciso antes verificar se o Estado está em crise no que diz respeito ao seu papel perante a sociedade que o legitima e financia. Ao que parece, o Estado no Brasil possui várias dimensões dessas crises.
O registro de Conceição (2006) acerca dos principais aspectos debatidos na 3ª edição do Fórum de Economia da Fundação Getúlio Vargas, sobre o trabalho apresentado por Cláudia Costin, ex-Ministra da Administração e Reforma do Estado, é emblemático. O referido trabalho, cujo título é “A crise do Estado no Brasil e novos
paradigmas de gestão”, foi apresentado no painel Choque de Gestão. Cláudia defende que o Estado apresenta quatro crises que se combinam e que devem ser enfrentadas.
Numa retrospectiva histórica, encontramos em Sachs et alii (2001) o registro de que o Brasil, no início do século XX, possuía um Estado oligárquico e patrimonial,
inserido no bojo de uma economia agrícola mercantil e de uma sociedade de classes
recém saída de um regime escravocrata.
Passado um século inteiro, é possível encontrar hoje o Brasil como um país que possui um Estado democrático, no qual convivem aspectos tanto de natureza burocrática, quanto gerencial. Este Estado preside uma economia globalizada e uma
sociedade que não é mais aquela compartimentada em classes, mas sim, em estratos, caracterizando o que se convencionou chamar de sociedade pós-industrial.
Uma sociedade pós-industrial, conforme ensina Masi (1999), distingue-se da sociedade industrial na medida em que esta última produz, sobretudo, meios de produção, bens a serem consumidos e capital, enquanto aquela gera conhecimento,
administração de sistemas e capacidade de gerenciar as mudanças.
Nesse sentido, com impactos diretos na realidade do Brasil contemporâneo, esta nova sociedade pós-industrial se caracteriza por um crescimento industrial com
desemprego, pela ampliação do setor de serviços, pela dispersão da indústria em geral e da indústria de ponta em particular, pelo colapso das lutas sindicais e incremento da participação em movimentos sociais (ONGs), pelo significativo crescimento da indústria do entretenimento e do turismo, e, por fim, pelo enfraquecimento do poder central e de um modelo de Estado assistencial.
Estas são algumas questões emergentes que agora estão postas diante da sociedade brasileira, e que demandam novos modelos de interpretação, de tal forma a ajustar a capacidade de resposta dos gestores à nova realidade que se impõe.
Entrementes, não é a realidade que está em crise. É da natureza do sistema econômico, político e social a permanente transformação. Ocorre que, em razão de sua acelerada dinâmica, a realidade colapsou os modelos mentais de compreensão daqueles que a interpretam, gerando uma ansiedade coletiva. Provavelmente os modelos interpretativos da realidade ora disponíveis são mais adequados para a era industrial, e por isso agora precisam ser substituídos.
Convém lembrar também que, em razão do tempo presente ser de transição, nele estão convivendo estruturas agrárias, industriais e estas estruturas nascentes, da era pós-industrial.
Nesse sentido, ainda vemos resquícios de uma transição, no plano político, de um Estado oligárquico para um Estado democrático. Na esfera administrativa, a transição ocorre na passagem do Estado patrimonial para o Estado gerencial. Por fim, no âmbito social, acompanhamos a passagem de uma sociedade senhorial para a sociedade pós-industrial.
No Brasil, estas transformações foram operadas de forma rápida, saltando etapas, ao contrário do que ocorreu na Europa, o que fez com que seus resultados fossem de certo modo incompletos, na medida em que a modernização não foi acompanhada da redução da injustiça, nem tampouco o desenvolvimento não colocou o país em paridade com os países ricos.
No Brasil, apesar do progresso técnico, ainda existem resquícios de subdesenvolvimento, e apesar da modernização, o país permanece atrasado por ser dual e injusto.
No tocante à administração do Estado, Bresser (1998) assinala que existem três modelos fundamentais, em perspectiva histórica: a administração patrimonialista; a administração pública burocrática; e a administração pública gerencial.
Em razão das contradições presentes no Brasil, ainda é possível verificar a presença de todas estas variantes de administração do Estado, o que, de certa forma, confunde os administrados e promove a idéia equivocada de que o setor público é uma permanente fonte de corrupção e ineficiência. É preciso compreender as particularidades destes modelos, para que se possa fazer um correto diagnóstico da administração pública no Brasil.
A administração patrimonialista se caracteriza por ser do Estado, contudo, sem ser de caráter público, na medida em que não tem por objeto o interesse público. É o padrão administrativo típico dos Estados pré-capitalistas, mais especificamente das monarquias absolutistas que predominaram na época anterior ao capitalismo industrial e à democracia.
Nesse modelo de administração, o patrimônio do príncipe se confunde com o patrimônio público. No Brasil e nos regimes democráticos imperfeitos, o patrimonialismo sobrevive por meio do clientelismo e das relações de tutela do Estado para com os administrados.
Suas variantes no campo fático abrangem desde a corrupção, praticada por agentes que lidam com recursos, até a concessão de favores especiais e cargos, como forma de estabelecimento de vínculos, que satisfazem apenas a interesses privados.
Por sua vez, a administração pública burocrática seria aquela fundamentada em um sistema de serviço civil profissional,sob a égide de um contexto racional-legal
weberiano e na universalização dos procedimentos.
Registra Bateman (1998) que era uma forte convicção em Max Weber o fato de que as estruturas burocráticas pudessem eliminar a variabilidade dos resultados numa organização.
Para que as organizações atingissem este fim, Weber recomendava uma padronização dos cargos, compondo uma rede estruturada e formal de relacionamentos. Por sua vez, o comportamento dos agentes seria padronizado por meio de regras e regulamentos, e a autoridade seria decorrente muito mais das posições assumidas do que dos indivíduos.
Suas limitações residem na limitada flexibilidade e na lentidão do processo decisório, além de ignorar a importância dos indivíduos e das relações interpessoais.
Tais limitações cobraram um preço em termos de eficiência do serviço público aqui no Brasil, na medida em que a implementação de uma administração pública burocrática foi de certa forma tardia.
Na Europa, a burocratização conforme um modelo racional-legal weberiano surgiu no final do século XIX, enquanto nos Estados Unidos, este modelo foi introduzido no início do século XX. Contudo, apenas na década dos anos 1930, sob um ambiente de liberalismo, mas não de democracia, é que se estabeleceu a administração pública burocrática.
A despeito da reforma burocrática ter representado um grande avanço, na medida em que buscava um rompimento com o modelo patrimonialista, e lançava as
bases para o surgimento de um corpo burocrático profissional, ela perdeu seu timing
histórico.
No Brasil, a reforma burocrática ocorreu fora do tempo, pois a dinâmica das transformações econômicas e sociais assumia um comportamento dissonante em face da administração pública burocrática.
Esta constatação decorre da análise, numa perspectiva histórica, do período compreendido entre 1930 e 1970. Nessa janela de tempo verificou-se uma relativa inconsistência entre as novas tarefas assumidas pelo Estado e o ritmo acelerado do progresso tecnológico em todos os campos da atuação humana.
O descompasso entre as características de lentidão decisória e rigidez procedimental da administração pública burocrática, com as exigências de flexibilidade e adaptabilidade que as transformações em curso impuseram aos gestores públicos e políticos, determinou que estes atores buscassem operar reformas parciais, ou que simplesmente desobedecessem aos princípios da burocracia.
Aqui no Brasil ocorreu uma reforma intermediária de cunho desenvolvimentista em 1967, cuja materialização jurídica consubstanciava-se no Decreto-Lei nº 200, e que pretendia substituir a administração pública burocrática por uma “administração para o desenvolvimento”, a partir de cinco princípios fundamentais: o planejamento (que seria o princípio dominante da reforma, voltado para o desenvolvimento econômico-social e a segurança nacional); descentralização (da execução das atividades programadas); delegação de competência (instrumento de descentralização administrativa); coordenação; e controle.
A reforma de 1967 teve o mérito de fazer uma distinção clara entre a administração direta e a indireta, garantindo às autarquias e fundações, bem como também às empresas estatais, uma autonomia de gestão muito maior do que elas possuíam anteriormente.
Esta reforma de cunho desenvolvimentista foi uma tentativa de superação da excessiva rigidez da administração burocrática. Houve uma ênfase no sentido da descentralização, por meio da autonomia da administração indireta, com a suposição de que tal medida aumentaria a eficiência administrativa.
Dessa forma, o Decreto-Lei nº 200 promoveu a transferência das atividades de produção de bens e serviços para as autarquias, fundações, empresas públicas e
sociedades de economia mista, consagrando uma situação que já estava se delineando na prática.
Como corolários dos princípios de racionalidade administrativa, foram instituídos o planejamento, o orçamento, a descentralização e o controle de resultados.
Nas entidades da administração indireta, a descentralização permitiu que fossem feitas contratações de empregados regidos pela CLT1, submetidos ao regime privado de contratação de trabalho. Era uma época de grande expansão das empresas estatais e das fundações, e por isso, por intermédio da flexibilização de sua administração, o governo buscava uma maior eficiência nas atividades econômicas do Estado, ao mesmo tempo em que fortalecia a aliança política entre a alta tecnoburocracia estatal, tanto a civil quanto a militar, e a classe empresarial.
Não obstante, o Decreto Lei 200 provocou duas consequências indesejáveis que não foram previstas.
A primeira delas decorreu da possibilidade de contratação de empregados sem a realização de concurso público, o que favoreceu a permanência das práticas patrimonialistas e fisiológicas.
A segunda consequência foi o gradativo abandono do desenvolvimento da administração direta, que era vista de forma pejorativa como sendo burocrática ou rígida, e assim, não foram feitos novos concursos públicos nem tampouco foi aperfeiçoada a carreira de altos administradores.
Ambas as circunstâncias levaram ao enfraquecimento do núcleo estratégico do Estado.
Em 1985, com o fim do regime militar, foi iniciado o processo de transição democrática. Como a reforma de 1967 era identificada como sendo de cunho autoritário, seus fundamentos foram aos poucos banidos, sem que, em contrapartida, fosse promovida uma verdadeira reforma gerencial na administração pública.
Ao contrário, o que se verificou foi um retorno, no plano administrativo, aos ideais burocráticos da década dos anos 1930, bem como, no plano político, uma tentativa de resgatar o populismo da década dos anos 1950.
Por ocasião da promulgação da Constituição de 1988, a centro-esquerda burocrática, desenvolvimentista e nacionalista estava em franca crise nos países do Primeiro Mundo. Porém, no Brasil ela ainda era muito influente, de sorte que no capítulo da constituição, destinado à regulamentação da administração pública, foram consagrados princípios arcaicos, próprios de uma administração burocrática, rígida, e bastante centralizada.
Dessa forma, a Constituição de 1988 ignorou totalmente a evolução conceitual que a administração pública experimentava nos países mais desenvolvidos.
Os constituintes revelaram uma enorme falta de visão, identificando na crise do Estado representado pelo regime militar, a descentralização como sua mais contundente expressão, de tal forma que reagiram promovendo um forte incremento da administração central, nos moldes burocráticos, em franco retrocesso com as demandas de uma administração gerencial e eficiente.
A justificativa ética para este retrocesso era seu caráter corretivo em face do clientelismo que a descentralização favoreceu. Contudo, seu efeito colateral foi a afirmação de privilégios corporativistas que apenas favoreciam o fortalecimento das práticas patrimonialistas do passado. Assim, a Constituição de 1988 permitiu que fosse consolidada uma série de privilégios, atendendo ao recrudescimento do corporativismo no bojo da abertura democrática, como se os interesses particulares de alguns atores sociais se confundissem com os interesses gerais da sociedade.
Um tremendo golpe para o saneamento das finanças públicas brasileiras foi dado com a combinação, de um lado, de um generoso sistema de aposentadorias com remuneração integral e sem um limite de idade mínima, e, de outro, com a transformação de cerca de 400.000 funcionários celetistas das autarquias e fundações públicas, que passaram à condição de estatutários, detentores de estabilidade e aposentadoria integral, sem que tivessem realizado quaisquer contribuições prévias para a obtenção desses privilégios.
Todas estas circunstâncias provavelmente contribuíram para o desprestígio a
administração pública no Brasil. Os constituintes de 1988 não foram capazes de perceber a enorme crise fiscal que estava em gestação, nem tampouco a crise do aparelho de Estado, que demandava uma reconstrução. Não viram que era preciso recuperar a poupança pública, e, ao mesmo tempo, dotar o Estado de novas formas de intervenção, na qual a competição funcionasse como um estímulo ao progresso.
Urgia a necessidade de se criar uma administração que fosse não apenas profissional, mas também eficiente e voltada para o atendimento das demandas da sociedade.
Pinheiro et Alii (2006) assinalam que, muitas vezes, a dificuldade de se ter uma avaliação objetiva acerca de aspectos da vida nacional decorre de uma dissonância cognitiva entre a realidade e a sua percepção pela população, que possui modelos mentais com muitos conceitos pré-concebidos. Estes autores citam Mário Vargas Llosa e sua análise sobre a tradição latino-americana da “rejeição do real e do possível, em nome do imaginário e da quimera”.
Outra explicação possível pode ser encontrada em Marshall apud Cardoso (2006), um sociólogo que acreditava ser a expansão da cidadania um dos fatores que reduziriam as desigualdades econômicas geradas pelo capitalismo.
Nesse sentido, a cidadania seria uma espécie de igualdade humana básica, vinculada ao conceito de participação integral na comunidade, não sendo incompatível com as desigualdades que diferenciavam os vários níveis econômicos da sociedade. Dessa forma, a desigualdade do sistema de classes sociais seria aceitável desde que a igualdade de cidadania fosse assegurada.
Por sua vez, a expansão da cidadania é obtida a partir da progressiva e sequencial assimilação dos direitos civis, políticos e sociais. Os direitos civis são aqueles que asseguram as liberdades individuais.
Os direitos políticos consistem basicamente no direito ao voto e o de participação na estrutura de poder. Os direitos sociais referem-se à fruição de um mínimo de bem-estar econômico, sobretudo com relação ao acesso aos padrões civilizados de educação e saúde.
Não obstante, esta sequência de construção da cidadania foi invertida no Brasil, na medida em que primeiro foram entronizados os direitos sociais, num contexto de supressão dos direitos políticos e de redução dos direitos civis, conforme foi o regime ditatorial de Vargas.
Durante a ditadura militar foram conferidos os direitos políticos de uma forma bizarra, em que os órgãos de representação política eram meros instrumentos para legitimar o regime.
Apenas no fim do regime militar é que a afirmação dos movimentos da sociedade civil organizada começou a se impor com mais intensidade, tanto os oriundos das classes médias, como a OAB2 e a ABI3, quanto aqueles representativos das camadas populares.
Talvez seja por isso que no Brasil exista a tendência à busca pela tutela do Estado, ou ainda o entendimento de que ao Estado compete a obrigação de prover todos os direitos possíveis, como se houvesse uma nítida separação entre o governo e a população que é administrada.
Este pensamento faz com que o senso comum entenda ser o Estado um provedor irrestrito, e não um gestor de recursos da sociedade, que precisa fazer escolhas, muitas delas impopulares, em prol dessa mesma sociedade.
Quanto a tentativa de Reforma Gerencial de 1995, assinala Bressan (2002) que, embora a reforma administrativa implementada no início do governo de Fernando Henrique Cardoso tenha sido um ambicioso projeto do então ministro Luiz Carlos Bresser Pereira, com vistas a redefinir o papel da máquina do Estado na sociedade, ela acabou sendo interpretado pela opinião pública como uma mera medida de contenção fiscal, o que mais uma vez demonstra a falta de capacidade do brasileiro médio compreender uma realidade complexa.
A situação encontrada em 1995 pelo novo governo era caracterizada por uma
excessiva burocratização e rigidez, que comprometia a iniciativa e a criatividade, gerando desmotivação. Por sua vez, a atividade departamental e fragmentada impedia que os servidores visualizassem os impactos de seus trabalhos, de tal forma que o cumprimento de regras e regulamentos transformava-se num fim em si mesmo, ficando o atendimento à população num segundo plano.
Além disso, o excesso de normas de documentação de controles tornava os
processos administrativos mais corriqueiros muito longos, onerosos e ineficazes. Por
fim, a centralização da autoridade tornava as estruturas organizacionais muito
hierarquizadas, lentas e inflexíveis, comprometendo a sua capacidade de responder às demandas da população.
Foi nesse contexto que se empreendeu a tentativa de reforma administrativa, que se sustentava em três pilares: a inequívoca vontade política do presidente recém eleito; o prestígio intelectual e a competência do ministro Bresser; a estruturação do MARE4 .
Para tentar garantir o seu êxito era preciso assegurar um espaço político e administrativo para que o ministro e sua equipe pudessem conceber o plano, ao mesmo tempo em que se montava a estrutura administrativa necessária, e last but not least, enfrentar os obstáculos, que não seriam poucos.
Os obstáculos que deveriam ser enfrentados estavam dentro e fora do governo.
No âmbito governamental havia o corporativismo, as restrições de caráter fiscal da área econômica e a reação dos quadros das carreiras dominantes, como o Tesouro e a área diplomática. Externamente, a reação vinha das centrais sindicais, dos parlamentares vinculados ao setor público, e da própria opinião pública, pouco esclarecida sobre o assunto.
A despeito dessas dificuldades, a reforma foi desencadeada atuando em três dimensões: uma de caráter institucional; outra sob o enfoque cultural; e a última sob o aspecto da gestão no sentido estrito.
Assim, a dimensão institucional tinha por fulcro eliminar os entraves legais à modernização da administração pública, permitindo que fossem implantados novos modelos institucionais. Já a dimensão cultural da reforma buscava a transição de um
ambiente de cultura burocrática, para um paradigma de cultura gerencial. E por último, a dimensão relativa à gestão pública estaria voltada para o aperfeiçoamento da administração, por meio da modernização da estrutura organizacional e dos métodos de gestão.
Não obstante, a rigor as reformas na administração pública possuem uma ênfase institucional, na medida em que produzem mudanças na estrutura organizacional e no arcabouço jurídico-legal.
O senso comum e a ignorância de alguns agentes políticos fazem com que eles até acreditem que uma reforma gerencial esteja limitada a simples alterações nos organogramas dos múltiplos órgãos e repartições da administração pública. Isto seria reduzir a importância de uma iniciativa cujo escopo era muito mais amplo.
A reforma administrativa de Bresser assumia o conceito de que não cabia ao aparato estatal a realização de todas as funções necessárias à prestação de serviços demandados pela sociedade. Por esta razão, as políticas adotadas visavam, preliminarmente, redirecionar o papel do Estado, de executor direto dos serviços para promotor do desenvolvimento econômico e social, ao mesmo tempo em que potencializavam a sua capacidade de formulação, controle e avaliação de políticas públicas.
Adicionalmente, a reforma pretendia recuperar a autonomia de gestão e o dinamismo que seriam requeridos para a prestação de serviços estatais, por meio de
novos modelos institucionais.
Procurou-se também o fortalecimento do núcleo estratégico do Estado, por meio do desenvolvimento de uma política de recursos humanos que fosse capaz de atender o seu novo papel, com ênfase na capacidade de articulação e regulação dos agentes econômicos, sociais e políticos.
Contudo, esta iniciativa esbarrou num dos maiores problemas da administração pública brasileira: sua excessiva politização. Nos Estados modernos do mundo ocidental existe uma burocracia profissional que protege a máquina estatal da interferência dos interesses partidários e privados.
Ao contrário, na administração pública brasileira, a maior parte dos cargos estratégicos, que têm responsabilidades gerenciais, são de livre provimento, ocupados por pessoas estranhas ao serviço público, indicados por membros do governo ou políticos da base governista.
Dessa forma, o núcleo estratégico do Estado é ocupado por pessoas com as mais distintas qualificações e procedências, bem como com os mais diversos vínculos e interesses, que tanto podem ser de caráter político, quanto profissionais e pessoais.
Via de regra, estes postos são preenchidos sem que sejam consideradas as qualidades gerais de seus ocupantes, nem tampouco suas adequações a determinadas funções públicas.
Não obstante, os ocupantes desses cargos exercem forte influência na gestão
das políticas públicas e também na qualidade da liderança dos processos de reforma e modernização da administração pública. Este quadro permite a constituição de múltiplos circuitos paralelos na estrutura organizacional da administração pública, que distorcem a lógica de uma hierarquização profissional e responsabilidade administrativa, enfraquecendo um eventual combate ao clientelismo e à corrupção.
Passados mais de dez anos desta experiência de reforma gerencial, é possível assinalar que seus resultados ficaram aquém do previsto. Em primeiro lugar a reforma não conseguiu romper com a tradição patrimonialista do sistema político brasileiro, que continua a valer-se dos cargos de livre provimento como uma moeda de troca em suas negociações.
Da mesma forma, a política de recursos humanos ainda tem sido criticada, pois as ações de reestruturação de carreiras, de planos de cargos e salários, de valorização dos servidores, e de avaliação de desempenho, ainda não foram implementadas de forma sistemática e abrangente. Registre-se, contudo, que a reforma logrou avanços no campo do planejamento e do orçamento público.
A partir da reforma, os Planos Plurianuais foram elaborados de acordo com critérios de estabelecimento de prioridades oriundas das demandas da população, de tal forma que os programas de governo passaram a ser o elo de ligação entre os problemas da sociedade e o orçamento.
Ao que parece, a grande questão a ser superada no sentido da busca de uma administração pública de qualidade parece ser a excessiva promiscuidade entre os atores políticos e a administração, em todos os níveis hierárquicos, sobretudo nos escalões superiores, onde as decisões são tomadas.
Tal circunstância impede o fortalecimento dos quadros de carreira da administração, comprometendo o profissionalismo, o prestígio, o espírito de corpo e a autonomia institucional.
Não obstante, os avanços devem estar focados na busca da melhoria do desempenho das organizações públicas, que, no entender de Rezende et Alii (2005), requer dos gestores uma grande capacidade de compreender as mudanças em curso e de se antecipar a elas, além de lidar e explorar todas as variáveis internas e externas que possam impactar o desempenho das organizações, ou seja, ser capaz de uma postura prospectiva ao invés de uma atitude reativa.
O fortalecimento da Ética como antecedente da reforma Pretendemos sugerir que existe uma dimensão a ser explorada no contexto de uma reforma administrativa, que deveria anteceder a todas as ações subsequentes no campo da implementação propriamente dita. Trata-se do fortalecimento da ética na administração pública.
Para esta análise, empregamos a conceituação de Bateman (1998) para caracterizar a ética. Nesse sentido, ela teria o objetivo de identificar tanto as regras que devem governar o comportamento das pessoas, quanto os valores que devem ser buscados, tais como a honestidade, a proteção, a lealdade e a justiça.
Não obstante, quando exigimos que um valor preceda os outros, passamos a encarar a ética como sendo também um sistema de ordenação de valores. Um sistema ético estaria na base tanto das escolhas morais pessoais, quanto das atitudes dos servidores públicos em face de usas relações com a sociedade.
Assim, a ética na administração pública constitui-se na forma pela qual as normas morais pessoais se aplicam às atividades e aos objetivos de uma organização pública. Está ética não decorre de um padrão moral distinto, mas sim daquele decorrente do contexto das relações entre a administração pública e a população, com seus problemas próprios e exclusivos.
Não obstante, embora essas atividades sejam alimentadas pelo sistema moral de valores pessoais próprios, elas sofrem uma transformação em suas prioridades ou sensibilidades quando são operadas num contexto institucional de múltiplas restrições e pressões, bem como pelas relações envolvendo aquisição de poder.
De um modo geral, as questões éticas e morais estão presentes em muitas decisões e ações do cotidiano da administração pública, ainda que os gestores não se deem conta disso.
A opinião pública e a mídia demandam, entre outros aspectos, transparência, retidão, decência, probidade e respeito pelo outros, no trato das questões estatais, e, por isso, cada vez mais as organizações públicas procuram passar à sociedade uma imagem de aderência a um comportamento ético.
Contudo, nem sempre os agentes públicos se dedicam a esta reflexão e acabam adotando medidas que apenas priorizam seus interesses imediatos.
Por esta razão, entendemos que o fortalecimento dos princípios éticos dos quadros da administração pública deve ser um ato preliminar a qualquer iniciativa de
reforma administrativa, cuja eficácia pode ser completamente esterilizada se os valores éticos não tiverem sido incutidos nos agentes que a promovem.
Para buscar este propósito, devem ser enfatizados a reflexão e o debate acerca de códigos de ética nas organizações públicas, que contemplem as seguintes questões: propinas; pagamentos impróprios; conflitos de interesses; informações privilegiadas; recebimento de presentes; doações; meio ambiente; segurança no trabalho; nepotismo; relações com a comunidade; e outros aspectos.
Estas ações já está há algum tempo sendo disseminadas no âmbito corporativo privado, sob a denominação de boas práticas de governança corporativa. A sua assimilação pela administração pública tenderá a fortalecer e legitimar o papel do Estado na sociedade, aumentando o bem-estar social e o exercício da cidadania.

Considerações Finais

Verificamos ao longo do texto que existem tradições há muito arraigadas na cultura da administração pública brasileira, tais como o patrimonialismo e o clientelismo, que impedem a eficiência e o trato de cunho gerencial que a sociedade deve exigir da atuação do Estado.
Ao longo dos sucessivos governos, é possível constatar que existiram várias tentativas de implementar-se um novo paradigma de gestão, que alinhasse a atuação do Estado com os ditames de uma administração pública moderna e eficiente.
Porém, vimos também que sempre que as modernas práticas de gestão pública colidiram com os interesses patrimonialistas de grupos e atores com capacidade de influência na atuação do Estado, as reformas foram esvaziadas e esterilizadas.
Com base no que foi aqui relatado, fica uma robusta convicção no sentido de que não se trata de falta de diagnóstico ou de capacidade técnica para enfrentar os desafios impostos pela evolução das relações sociais.
O que não tem sido explorado de forma mais aprofundada é o papel da dimensão ética nessa questão. Os fundamentos éticos, operando na natureza íntima de cada indivíduo, podem viabilizar os comportamentos e condutas que são exigidos nessa busca pela eficiência da gestão pública.
Por isso, fica o alerta: não devemos descurar da dimensão ética nas reformas administrativas futuras, sob pena de repetirmos, amiúde, os erros das tentativas anteriores.

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[1] Professor Orientador da Faculdade de Tecnologia Equipe Darwin/Brasília-DF. Especialista de Educação. Psicólogo Clínico. Doutor em Teologia. Diretor da Consultoria SELF.

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