ANÁLISE
ÉTICA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL
Joenildo
Fonseca Leite [1]
Apresentação
Este trabalho se
propõe a discorrer acerca das propostas de reforma gerencial que a
administração pública no Brasil tem acolhido. A atuação do Estado no mundo globalizado
exige, cada vez mais, a existência de uma estrutura administrativa apoiada em
organizações públicas, que sejam capazes de realizar as múltiplas tarefas que
as demandas da sociedade impõem aos governantes.
Para que se proponha
reformar a administração pública, é preciso antes verificar se o Estado está em
crise no que diz respeito ao seu papel perante a sociedade que o legitima e
financia. Ao que parece, o Estado no Brasil possui várias dimensões dessas crises.
O registro de
Conceição (2006) acerca dos principais aspectos debatidos na 3ª edição do Fórum
de Economia da Fundação Getúlio Vargas, sobre o trabalho apresentado por
Cláudia Costin, ex-Ministra da Administração e Reforma do Estado, é emblemático.
O referido trabalho, cujo título é “A crise do Estado no Brasil e novos
paradigmas de gestão”, foi apresentado no painel
Choque de Gestão. Cláudia defende que o Estado apresenta quatro crises que se
combinam e que devem ser enfrentadas.
Numa retrospectiva
histórica, encontramos em Sachs et alii (2001) o registro de que o Brasil, no
início do século XX, possuía um Estado oligárquico e patrimonial,
inserido no bojo de uma economia agrícola mercantil
e de uma sociedade de classes
recém saída de um regime escravocrata.
Passado um século
inteiro, é possível encontrar hoje o Brasil como um país que possui um Estado
democrático, no qual convivem aspectos tanto de natureza burocrática, quanto
gerencial. Este Estado preside uma economia globalizada e uma
sociedade que não é mais aquela compartimentada em
classes, mas sim, em estratos, caracterizando o que se convencionou chamar de
sociedade pós-industrial.
Uma sociedade
pós-industrial, conforme ensina Masi (1999), distingue-se da sociedade
industrial na medida em que esta última produz, sobretudo, meios de produção,
bens a serem consumidos e capital, enquanto aquela gera conhecimento,
administração de sistemas e capacidade de gerenciar
as mudanças.
Nesse sentido, com
impactos diretos na realidade do Brasil contemporâneo, esta nova sociedade
pós-industrial se caracteriza por um crescimento industrial com
desemprego, pela ampliação do setor de serviços,
pela dispersão da indústria em geral e da indústria de ponta em particular,
pelo colapso das lutas sindicais e incremento da participação em movimentos
sociais (ONGs), pelo significativo crescimento da indústria do entretenimento e
do turismo, e, por fim, pelo enfraquecimento do poder central e de um modelo de
Estado assistencial.
Estas são algumas
questões emergentes que agora estão postas diante da sociedade brasileira, e
que demandam novos modelos de interpretação, de tal forma a ajustar a
capacidade de resposta dos gestores à nova realidade que se impõe.
Entrementes, não é a
realidade que está em crise. É da natureza do sistema econômico, político e
social a permanente transformação. Ocorre que, em razão de sua acelerada
dinâmica, a realidade colapsou os modelos mentais de compreensão daqueles que a
interpretam, gerando uma ansiedade coletiva. Provavelmente os modelos
interpretativos da realidade ora disponíveis são mais adequados para a era industrial,
e por isso agora precisam ser substituídos.
Convém lembrar também
que, em razão do tempo presente ser de transição, nele estão convivendo
estruturas agrárias, industriais e estas estruturas nascentes, da era
pós-industrial.
Nesse sentido, ainda
vemos resquícios de uma transição, no plano político, de um Estado oligárquico
para um Estado democrático. Na esfera administrativa, a transição ocorre na
passagem do Estado patrimonial para o Estado gerencial. Por fim, no âmbito
social, acompanhamos a passagem de uma sociedade senhorial para a sociedade
pós-industrial.
No Brasil, estas
transformações foram operadas de forma rápida, saltando etapas, ao contrário do
que ocorreu na Europa, o que fez com que seus resultados fossem de certo modo
incompletos, na medida em que a modernização não foi acompanhada da redução da
injustiça, nem tampouco o desenvolvimento não colocou o país em paridade com os
países ricos.
No Brasil, apesar do
progresso técnico, ainda existem resquícios de subdesenvolvimento, e apesar da
modernização, o país permanece atrasado por ser dual e injusto.
No tocante à
administração do Estado, Bresser (1998) assinala que existem três modelos
fundamentais, em perspectiva histórica: a administração patrimonialista; a administração
pública burocrática; e a administração pública gerencial.
Em razão das
contradições presentes no Brasil, ainda é possível verificar a presença de
todas estas variantes de administração do Estado, o que, de certa forma, confunde
os administrados e promove a idéia equivocada de que o setor público é uma
permanente fonte de corrupção e ineficiência. É preciso compreender as particularidades
destes modelos, para que se possa fazer um correto diagnóstico da administração
pública no Brasil.
A administração
patrimonialista se caracteriza por ser do Estado, contudo, sem ser de caráter
público, na medida em que não tem por objeto o interesse público. É o padrão
administrativo típico dos Estados pré-capitalistas, mais especificamente das monarquias
absolutistas que predominaram na época anterior ao capitalismo industrial e à
democracia.
Nesse modelo de
administração, o patrimônio do príncipe se confunde com o patrimônio público.
No Brasil e nos regimes democráticos imperfeitos, o patrimonialismo sobrevive
por meio do clientelismo e das relações de tutela do Estado para com os
administrados.
Suas variantes no
campo fático abrangem desde a corrupção, praticada por agentes que lidam com
recursos, até a concessão de favores especiais e cargos, como forma de
estabelecimento de vínculos, que satisfazem apenas a interesses privados.
Por sua vez, a
administração pública burocrática seria aquela fundamentada em um sistema de
serviço civil profissional,sob a égide de um contexto racional-legal
weberiano e na universalização dos procedimentos.
Registra Bateman
(1998) que era uma forte convicção em Max Weber o fato de que as estruturas
burocráticas pudessem eliminar a variabilidade dos resultados numa organização.
Para que as
organizações atingissem este fim, Weber recomendava uma padronização dos
cargos, compondo uma rede estruturada e formal de relacionamentos. Por sua vez,
o comportamento dos agentes seria padronizado por meio de regras e
regulamentos, e a autoridade seria decorrente muito mais das posições assumidas
do que dos indivíduos.
Suas limitações
residem na limitada flexibilidade e na lentidão do processo decisório, além de
ignorar a importância dos indivíduos e das relações interpessoais.
Tais limitações
cobraram um preço em termos de eficiência do serviço público aqui no Brasil, na
medida em que a implementação de uma administração pública burocrática foi de
certa forma tardia.
Na Europa, a
burocratização conforme um modelo racional-legal weberiano surgiu no final do
século XIX, enquanto nos Estados Unidos, este modelo foi introduzido no início
do século XX. Contudo, apenas na década dos anos 1930, sob um ambiente de
liberalismo, mas não de democracia, é que se estabeleceu a administração
pública burocrática.
A despeito da reforma
burocrática ter representado um grande avanço, na medida em que buscava um
rompimento com o modelo patrimonialista, e lançava as
bases para o surgimento de um corpo burocrático
profissional, ela perdeu seu timing
histórico.
No Brasil, a reforma
burocrática ocorreu fora do tempo, pois a dinâmica das transformações
econômicas e sociais assumia um comportamento dissonante em face da
administração pública burocrática.
Esta constatação
decorre da análise, numa perspectiva histórica, do período compreendido entre
1930 e 1970. Nessa janela de tempo verificou-se uma relativa inconsistência
entre as novas tarefas assumidas pelo Estado e o ritmo acelerado do progresso
tecnológico em todos os campos da atuação humana.
O descompasso entre as
características de lentidão decisória e rigidez procedimental da administração
pública burocrática, com as exigências de flexibilidade e adaptabilidade que as
transformações em curso impuseram aos gestores públicos e políticos, determinou
que estes atores buscassem operar reformas parciais, ou que simplesmente
desobedecessem aos princípios da burocracia.
Aqui no Brasil ocorreu
uma reforma intermediária de cunho desenvolvimentista em 1967, cuja
materialização jurídica consubstanciava-se no Decreto-Lei nº 200, e que pretendia
substituir a administração pública burocrática por uma “administração para o desenvolvimento”,
a partir de cinco princípios fundamentais: o planejamento (que seria o
princípio dominante da reforma, voltado para o desenvolvimento econômico-social
e a segurança nacional); descentralização (da execução das atividades
programadas); delegação de competência (instrumento de descentralização
administrativa); coordenação; e controle.
A reforma de 1967 teve
o mérito de fazer uma distinção clara entre a administração direta e a
indireta, garantindo às autarquias e fundações, bem como também às empresas
estatais, uma autonomia de gestão muito maior do que elas possuíam
anteriormente.
Esta reforma de cunho
desenvolvimentista foi uma tentativa de superação da excessiva rigidez da
administração burocrática. Houve uma ênfase no sentido da descentralização, por
meio da autonomia da administração indireta, com a suposição de que tal medida
aumentaria a eficiência administrativa.
Dessa forma, o Decreto-Lei
nº 200 promoveu a transferência das atividades de produção de bens e serviços
para as autarquias, fundações, empresas públicas e
sociedades de economia mista, consagrando uma
situação que já estava se delineando na prática.
Como corolários dos princípios
de racionalidade administrativa, foram instituídos o planejamento, o orçamento,
a descentralização e o controle de resultados.
Nas entidades da
administração indireta, a descentralização permitiu que fossem feitas
contratações de empregados regidos pela CLT1, submetidos ao regime privado de
contratação de trabalho. Era uma época de grande expansão das empresas estatais
e das fundações, e por isso, por intermédio da flexibilização de sua administração,
o governo buscava uma maior eficiência nas atividades econômicas do Estado, ao
mesmo tempo em que fortalecia a aliança política entre a alta tecnoburocracia
estatal, tanto a civil quanto a militar, e a classe empresarial.
Não obstante, o
Decreto Lei 200 provocou duas consequências indesejáveis que não foram
previstas.
A primeira delas
decorreu da possibilidade de contratação de empregados sem a realização de
concurso público, o que favoreceu a permanência das práticas patrimonialistas e
fisiológicas.
A segunda consequência
foi o gradativo abandono do desenvolvimento da administração direta, que era
vista de forma pejorativa como sendo burocrática ou rígida, e assim, não foram
feitos novos concursos públicos nem tampouco foi aperfeiçoada a carreira de
altos administradores.
Ambas as circunstâncias
levaram ao enfraquecimento do núcleo estratégico do Estado.
Em 1985, com o fim do
regime militar, foi iniciado o processo de transição democrática. Como a
reforma de 1967 era identificada como sendo de cunho autoritário, seus
fundamentos foram aos poucos banidos, sem que, em contrapartida, fosse
promovida uma verdadeira reforma gerencial na administração pública.
Ao contrário, o que se
verificou foi um retorno, no plano administrativo, aos ideais burocráticos da
década dos anos 1930, bem como, no plano político, uma tentativa de resgatar o
populismo da década dos anos 1950.
Por ocasião da
promulgação da Constituição de 1988, a centro-esquerda burocrática,
desenvolvimentista e nacionalista estava em franca crise nos países do Primeiro
Mundo. Porém, no Brasil ela ainda era muito influente, de sorte que no capítulo
da constituição, destinado à regulamentação da administração pública, foram consagrados
princípios arcaicos, próprios de uma administração burocrática, rígida, e bastante
centralizada.
Dessa forma, a
Constituição de 1988 ignorou totalmente a evolução conceitual que a
administração pública experimentava nos países mais desenvolvidos.
Os constituintes
revelaram uma enorme falta de visão, identificando na crise do Estado representado
pelo regime militar, a descentralização como sua mais contundente expressão, de
tal forma que reagiram promovendo um forte incremento da administração central,
nos moldes burocráticos, em franco retrocesso com as demandas de uma
administração gerencial e eficiente.
A justificativa ética
para este retrocesso era seu caráter corretivo em face do clientelismo que a
descentralização favoreceu. Contudo, seu efeito colateral foi a afirmação de
privilégios corporativistas que apenas favoreciam o fortalecimento das práticas
patrimonialistas do passado. Assim, a Constituição de 1988 permitiu que fosse consolidada
uma série de privilégios, atendendo ao recrudescimento do corporativismo no
bojo da abertura democrática, como se os interesses particulares de alguns
atores sociais se confundissem com os interesses gerais da sociedade.
Um tremendo golpe para
o saneamento das finanças públicas brasileiras foi dado com a combinação, de um
lado, de um generoso sistema de aposentadorias com remuneração integral e sem
um limite de idade mínima, e, de outro, com a transformação de cerca de 400.000
funcionários celetistas das autarquias e fundações públicas, que passaram à
condição de estatutários, detentores de estabilidade e aposentadoria integral,
sem que tivessem realizado quaisquer contribuições prévias para a obtenção
desses privilégios.
Todas estas
circunstâncias provavelmente contribuíram para o desprestígio a
administração pública no Brasil. Os constituintes
de 1988 não foram capazes de perceber a enorme crise fiscal que estava em gestação,
nem tampouco a crise do aparelho de Estado, que demandava uma reconstrução. Não
viram que era preciso recuperar a poupança pública, e, ao mesmo tempo, dotar o
Estado de novas formas de intervenção, na qual a competição funcionasse como um
estímulo ao progresso.
Urgia a necessidade de
se criar uma administração que fosse não apenas profissional, mas também
eficiente e voltada para o atendimento das demandas da sociedade.
Pinheiro et Alii
(2006) assinalam que, muitas vezes, a dificuldade de se ter uma avaliação
objetiva acerca de aspectos da vida nacional decorre de uma dissonância
cognitiva entre a realidade e a sua percepção pela população, que possui
modelos mentais com muitos conceitos pré-concebidos. Estes autores citam Mário
Vargas Llosa e sua análise sobre a tradição latino-americana da “rejeição do
real e do possível, em nome do imaginário e da quimera”.
Outra explicação
possível pode ser encontrada em Marshall apud Cardoso (2006), um sociólogo que
acreditava ser a expansão da cidadania um dos fatores que reduziriam as
desigualdades econômicas geradas pelo capitalismo.
Nesse sentido, a cidadania
seria uma espécie de igualdade humana básica, vinculada ao conceito de participação
integral na comunidade, não sendo incompatível com as desigualdades que
diferenciavam os vários níveis econômicos da sociedade. Dessa forma, a desigualdade
do sistema de classes sociais seria aceitável desde que a igualdade de cidadania
fosse assegurada.
Por sua vez, a
expansão da cidadania é obtida a partir da progressiva e sequencial assimilação
dos direitos civis, políticos e sociais. Os direitos civis são aqueles que
asseguram as liberdades individuais.
Os direitos políticos
consistem basicamente no direito ao voto e o de participação na estrutura de
poder. Os direitos sociais referem-se à fruição de um mínimo de bem-estar
econômico, sobretudo com relação ao acesso aos padrões civilizados de educação
e saúde.
Não obstante, esta sequência
de construção da cidadania foi invertida no Brasil, na medida em que primeiro
foram entronizados os direitos sociais, num contexto de supressão dos direitos
políticos e de redução dos direitos civis, conforme foi o regime ditatorial de
Vargas.
Durante a ditadura
militar foram conferidos os direitos políticos de uma forma bizarra, em que os
órgãos de representação política eram meros instrumentos para legitimar o
regime.
Apenas no fim do
regime militar é que a afirmação dos movimentos da sociedade civil organizada
começou a se impor com mais intensidade, tanto os oriundos das classes médias,
como a OAB2 e a ABI3, quanto aqueles representativos das camadas populares.
Talvez seja por isso
que no Brasil exista a tendência à busca pela tutela do Estado, ou ainda o
entendimento de que ao Estado compete a obrigação de prover todos os direitos
possíveis, como se houvesse uma nítida separação entre o governo e a população
que é administrada.
Este pensamento faz
com que o senso comum entenda ser o Estado um provedor irrestrito, e não um
gestor de recursos da sociedade, que precisa fazer escolhas, muitas delas
impopulares, em prol dessa mesma sociedade.
Quanto a tentativa de
Reforma Gerencial de 1995, assinala Bressan (2002) que, embora a reforma
administrativa implementada no início do governo de Fernando Henrique Cardoso
tenha sido um ambicioso projeto do então ministro Luiz Carlos Bresser Pereira,
com vistas a redefinir o papel da máquina do Estado na sociedade, ela acabou
sendo interpretado pela opinião pública como uma mera medida de contenção
fiscal, o que mais uma vez demonstra a falta de capacidade do brasileiro médio
compreender uma realidade complexa.
A situação encontrada
em 1995 pelo novo governo era caracterizada por uma
excessiva burocratização e rigidez, que comprometia
a iniciativa e a criatividade, gerando desmotivação. Por sua vez, a atividade
departamental e fragmentada impedia que os servidores visualizassem os impactos
de seus trabalhos, de tal forma que o cumprimento de regras e regulamentos
transformava-se num fim em si mesmo, ficando o atendimento à população num
segundo plano.
Além disso, o excesso de normas de documentação de
controles tornava os
processos administrativos mais corriqueiros muito
longos, onerosos e ineficazes. Por
fim, a centralização da autoridade tornava as
estruturas organizacionais muito
hierarquizadas, lentas e inflexíveis, comprometendo
a sua capacidade de responder às demandas da população.
Foi nesse contexto que
se empreendeu a tentativa de reforma administrativa, que se sustentava em três
pilares: a inequívoca vontade política do presidente recém eleito; o prestígio
intelectual e a competência do ministro Bresser; a estruturação do MARE4 .
Para tentar garantir o
seu êxito era preciso assegurar um espaço político e administrativo para que o
ministro e sua equipe pudessem conceber o plano, ao mesmo tempo em que se
montava a estrutura administrativa necessária, e last but not least, enfrentar
os obstáculos, que não seriam poucos.
Os obstáculos que
deveriam ser enfrentados estavam dentro e fora do governo.
No âmbito governamental
havia o corporativismo, as restrições de caráter fiscal da área econômica e a
reação dos quadros das carreiras dominantes, como o Tesouro e a área
diplomática. Externamente, a reação vinha das centrais sindicais, dos parlamentares
vinculados ao setor público, e da própria opinião pública, pouco esclarecida
sobre o assunto.
A despeito dessas
dificuldades, a reforma foi desencadeada atuando em três dimensões: uma de
caráter institucional; outra sob o enfoque cultural; e a última sob o aspecto
da gestão no sentido estrito.
Assim, a dimensão
institucional tinha por fulcro eliminar os entraves legais à modernização da
administração pública, permitindo que fossem implantados novos modelos
institucionais. Já a dimensão cultural da reforma buscava a transição de um
ambiente de cultura burocrática, para um paradigma
de cultura gerencial. E por último, a dimensão relativa à gestão pública
estaria voltada para o aperfeiçoamento da administração, por meio da
modernização da estrutura organizacional e dos métodos de gestão.
Não obstante, a rigor
as reformas na administração pública possuem uma ênfase institucional, na
medida em que produzem mudanças na estrutura organizacional e no arcabouço
jurídico-legal.
O senso comum e a
ignorância de alguns agentes políticos fazem com que eles até acreditem que uma
reforma gerencial esteja limitada a simples alterações nos organogramas dos
múltiplos órgãos e repartições da administração pública. Isto seria reduzir a
importância de uma iniciativa cujo escopo era muito mais amplo.
A reforma
administrativa de Bresser assumia o conceito de que não cabia ao aparato
estatal a realização de todas as funções necessárias à prestação de serviços demandados
pela sociedade. Por esta razão, as políticas adotadas visavam, preliminarmente,
redirecionar o papel do Estado, de executor direto dos serviços para promotor
do desenvolvimento econômico e social, ao mesmo tempo em que potencializavam a
sua capacidade de formulação, controle e avaliação de políticas públicas.
Adicionalmente, a
reforma pretendia recuperar a autonomia de gestão e o dinamismo que seriam
requeridos para a prestação de serviços estatais, por meio de
novos modelos institucionais.
Procurou-se também o
fortalecimento do núcleo estratégico do Estado, por meio do desenvolvimento de
uma política de recursos humanos que fosse capaz de atender o seu novo papel,
com ênfase na capacidade de articulação e regulação dos agentes econômicos,
sociais e políticos.
Contudo, esta
iniciativa esbarrou num dos maiores problemas da administração pública
brasileira: sua excessiva politização. Nos Estados modernos do mundo ocidental
existe uma burocracia profissional que protege a máquina estatal da interferência
dos interesses partidários e privados.
Ao contrário, na
administração pública brasileira, a maior parte dos cargos estratégicos, que
têm responsabilidades gerenciais, são de livre provimento, ocupados por pessoas
estranhas ao serviço público, indicados por membros do governo ou políticos da
base governista.
Dessa forma, o núcleo
estratégico do Estado é ocupado por pessoas com as mais distintas qualificações
e procedências, bem como com os mais diversos vínculos e interesses, que tanto
podem ser de caráter político, quanto profissionais e pessoais.
Via de regra, estes
postos são preenchidos sem que sejam consideradas as qualidades gerais de seus
ocupantes, nem tampouco suas adequações a determinadas funções públicas.
Não obstante, os
ocupantes desses cargos exercem forte influência na gestão
das políticas públicas e também na qualidade da
liderança dos processos de reforma e modernização da administração pública.
Este quadro permite a constituição de múltiplos circuitos paralelos na
estrutura organizacional da administração pública, que distorcem a lógica de
uma hierarquização profissional e responsabilidade administrativa,
enfraquecendo um eventual combate ao clientelismo e à corrupção.
Passados mais de dez
anos desta experiência de reforma gerencial, é possível assinalar que seus
resultados ficaram aquém do previsto. Em primeiro lugar a reforma não conseguiu
romper com a tradição patrimonialista do sistema político brasileiro, que continua
a valer-se dos cargos de livre provimento como uma moeda de troca em suas negociações.
Da mesma forma, a política
de recursos humanos ainda tem sido criticada, pois as ações de reestruturação
de carreiras, de planos de cargos e salários, de valorização dos servidores, e
de avaliação de desempenho, ainda não foram implementadas de forma sistemática
e abrangente. Registre-se, contudo, que a reforma logrou avanços no campo do
planejamento e do orçamento público.
A partir da reforma,
os Planos Plurianuais foram elaborados de acordo com critérios de estabelecimento
de prioridades oriundas das demandas da população, de tal forma que os
programas de governo passaram a ser o elo de ligação entre os problemas da sociedade
e o orçamento.
Ao que parece, a
grande questão a ser superada no sentido da busca de uma administração pública
de qualidade parece ser a excessiva promiscuidade entre os atores políticos e a
administração, em todos os níveis hierárquicos, sobretudo nos escalões
superiores, onde as decisões são tomadas.
Tal circunstância
impede o fortalecimento dos quadros de carreira da administração, comprometendo
o profissionalismo, o prestígio, o espírito de corpo e a autonomia
institucional.
Não obstante, os
avanços devem estar focados na busca da melhoria do desempenho das organizações
públicas, que, no entender de Rezende et Alii (2005), requer dos gestores uma grande
capacidade de compreender as mudanças em curso e de se antecipar a elas, além
de lidar e explorar todas as variáveis internas e externas que possam impactar
o desempenho das organizações, ou seja, ser capaz de uma postura prospectiva ao
invés de uma atitude reativa.
O fortalecimento da
Ética como antecedente da reforma Pretendemos sugerir que existe uma dimensão a
ser explorada no contexto de uma reforma administrativa, que deveria anteceder
a todas as ações subsequentes no campo da implementação propriamente dita.
Trata-se do fortalecimento da ética na administração pública.
Para esta análise,
empregamos a conceituação de Bateman (1998) para caracterizar a ética. Nesse
sentido, ela teria o objetivo de identificar tanto as regras que devem governar
o comportamento das pessoas, quanto os valores que devem ser buscados, tais
como a honestidade, a proteção, a lealdade e a justiça.
Não obstante, quando
exigimos que um valor preceda os outros, passamos a encarar a ética como sendo
também um sistema de ordenação de valores. Um sistema ético estaria na base tanto
das escolhas morais pessoais, quanto das atitudes dos servidores públicos em face
de usas relações com a sociedade.
Assim, a ética na
administração pública constitui-se na forma pela qual as normas morais pessoais
se aplicam às atividades e aos objetivos de uma organização pública. Está ética
não decorre de um padrão moral distinto, mas sim daquele decorrente do contexto
das relações entre a administração pública e a população, com seus problemas
próprios e exclusivos.
Não obstante, embora
essas atividades sejam alimentadas pelo sistema moral de valores pessoais
próprios, elas sofrem uma transformação em suas prioridades ou sensibilidades
quando são operadas num contexto institucional de múltiplas restrições e
pressões, bem como pelas relações envolvendo aquisição de poder.
De um modo geral, as
questões éticas e morais estão presentes em muitas decisões e ações do
cotidiano da administração pública, ainda que os gestores não se deem conta
disso.
A opinião pública e a
mídia demandam, entre outros aspectos, transparência, retidão, decência,
probidade e respeito pelo outros, no trato das questões estatais, e, por isso,
cada vez mais as organizações públicas procuram passar à sociedade uma imagem
de aderência a um comportamento ético.
Contudo, nem sempre os
agentes públicos se dedicam a esta reflexão e acabam adotando medidas que
apenas priorizam seus interesses imediatos.
Por esta razão,
entendemos que o fortalecimento dos princípios éticos dos quadros da
administração pública deve ser um ato preliminar a qualquer iniciativa de
reforma administrativa, cuja eficácia pode ser
completamente esterilizada se os valores éticos não tiverem sido incutidos nos
agentes que a promovem.
Para buscar este
propósito, devem ser enfatizados a reflexão e o debate acerca de códigos de
ética nas organizações públicas, que contemplem as seguintes questões:
propinas; pagamentos impróprios; conflitos de interesses; informações privilegiadas;
recebimento de presentes; doações; meio ambiente; segurança no trabalho;
nepotismo; relações com a comunidade; e outros aspectos.
Estas ações já está há
algum tempo sendo disseminadas no âmbito corporativo privado, sob a denominação
de boas práticas de governança corporativa. A sua assimilação pela
administração pública tenderá a fortalecer e legitimar o papel do Estado na
sociedade, aumentando o bem-estar social e o exercício da cidadania.
Considerações
Finais
Verificamos ao longo
do texto que existem tradições há muito arraigadas na cultura da administração
pública brasileira, tais como o patrimonialismo e o clientelismo, que impedem a
eficiência e o trato de cunho gerencial que a sociedade deve exigir da atuação
do Estado.
Ao longo dos
sucessivos governos, é possível constatar que existiram várias tentativas de
implementar-se um novo paradigma de gestão, que alinhasse a atuação do Estado
com os ditames de uma administração pública moderna e eficiente.
Porém, vimos também
que sempre que as modernas práticas de gestão pública colidiram com os
interesses patrimonialistas de grupos e atores com capacidade de influência na atuação
do Estado, as reformas foram esvaziadas e esterilizadas.
Com base no que foi
aqui relatado, fica uma robusta convicção no sentido de que não se trata de
falta de diagnóstico ou de capacidade técnica para enfrentar os desafios
impostos pela evolução das relações sociais.
O que não tem sido
explorado de forma mais aprofundada é o papel da dimensão ética nessa questão.
Os fundamentos éticos, operando na natureza íntima de cada indivíduo, podem
viabilizar os comportamentos e condutas que são exigidos nessa busca pela
eficiência da gestão pública.
Por isso, fica o
alerta: não devemos descurar da dimensão ética nas reformas administrativas
futuras, sob pena de repetirmos, amiúde, os erros das tentativas anteriores.
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[1] Professor Orientador da Faculdade de Tecnologia Equipe
Darwin/Brasília-DF. Especialista de Educação. Psicólogo Clínico. Doutor em Teologia.
Diretor da Consultoria SELF.
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