ANÁLISE ANTROPOLÓGICA QUANTO AO FENÔMENO
RELIGIOSO-MÁGICO
JOENILDO FONSECA LEITE
Uberlândia - MG
2004
JOENILDO FONSECA LEITE
JOENILDO FONSECA LEITE
ANÁLISE ANTROPOLÓGICA QUANTO AO FENÔMENO
RELIGIOSO-MÁGICO
Uberlândia - MG
2004
LEITE,j.F. Análise antropológica quanto
ao fenômeno religioso-mágico. 2004. 89 f . Uberlândia-MG.2004.
Dedico
este trabalho de pesquisa Àquele que por mim entregou-se para morrer em meu
lugar, meu Senhor e Salvador JESUS CRISTO.
AGRADECIMENTOS
A
minha amada esposa Simone Crispim de
Souza Fonseca, que por longos dias teve que ser mãe e pai para os nossos
filhos, Gabriel e Gabrielle, enquanto, trabalhava nesta pesquisa;
Aos
meus pais, Joel Pereira da Fonseca e Eni Leite Fonseca, sem eles nada seria;
As comunidades Afro, Templos religiosos, Associações, e
lideranças que serviram como campo de pesquisa científica;
Aos Mestres que no dia-a-dia contribuíram para o aprimoramento final do
trabalho;
EPÍGRAFE
“Religião significa a
relação entre o
homem e o poder sobre-humano
no qual ele acredita ou do qual se sente dependente.
Essa relação se expressa em
emoções (confiança, medo),
conceitos (crença) e
ações (culto e ética).”
C. P. Tiele (1830-1902)
SUMÁRIO
I
|
Introdução.......................................................................................................
|
8
|
|
II
|
Antropologia
..................................................................................................
|
9
|
|
|
2.1
|
Antropologia – O estudo da
Humanidade ........................................
|
9
|
|
2.2
|
A utilidade da Antropologia
...............................................................
|
10
|
|
2.3
|
As qualidades distintivas da
Antropologia .......................................
|
11
|
|
2.4
|
O estudo da humanidade como um
todo ...........................................
|
11
|
|
2.5
|
O conceito de cultura
..........................................................................
|
12
|
III
|
Subdivisões da Antropologia
........................................................................
|
13
|
|
|
3.1
|
Antropologia Física
.............................................................................
|
13
|
|
3.2
|
Antropologia Cultural
........................................................................
|
13
|
IV
|
O Fenômeno Religioso-Mágico
segundo Luiz Gonzaga de Mello .............
|
15
|
|
|
4.1
|
Considerações Iniciais
........................................................................
|
15
|
|
4.2
|
Conceito de Religião
...........................................................................
|
16
|
|
4.3
|
Teorias de Religião
..............................................................................
|
20
|
|
4.3.1
|
Teorias Psicológicas
............................................................................
|
21
|
|
4.3.2
|
Teorias Sociológicas
............................................................................
|
24
|
|
4.3.3
|
A mentalidade primitiva de
Levy-Bruhl ...........................................
|
26
|
|
4.4
|
Outros tópicos no Estudo do
Fenômeno Religioso ...........................
|
28
|
|
4.4.1
|
Religião e Cosmovisão
........................................................................
|
29
|
|
4.4.2
|
Ritos de passagem e outros ritos
........................................................
|
30
|
|
4.4.3
|
Totemismo
...........................................................................................
|
33
|
|
4.4.4
|
Xamanismo, Êxtase e Possessão
.........................................................
|
36
|
V
|
O Etnema Religioso-Mágico
segundo Bernardo Bernardi ........................
|
40
|
|
|
5.1
|
O Etnema religioso-mágico e o
ambiente ..........................................
|
43
|
|
5.2
|
O Teísmo silvestre
...............................................................................
|
45
|
|
5.3
|
O Teísmo agrário
................................................................................
|
49
|
|
5.4
|
O Teísmo Pastoril
................................................................................
|
51
|
|
5.5
|
A Estratificação hierárquica
dos espíritos ........................................
|
52
|
|
5.6
|
O Culto em geral
.................................................................................
|
53
|
|
5.7
|
Mediação e culto: Os
Sacerdotes .......................................................
|
56
|
|
5.8
|
A Adivinhação: O Adivinho
...............................................................
|
58
|
|
5.9
|
A Feitiçaria: O Feiticeiro
....................................................................
|
59
|
|
5.10
|
Conservação e Reforma: O
Profeta ...................................................
|
61
|
|
5.11
|
Os Movimentos de Reforma
Religiosa ..............................................
|
63
|
VI
|
O Fenômeno
Religioso-Mágico como Sistema Cultural, segundo Clifford Geertz.
..............................................................................................
|
66
|
|
VII
|
Religião e Mística, segundo
Jean-François Catalan ...................................
|
71
|
|
|
7.1
|
A Mística e as Religiões
......................................................................
|
71
|
|
7.2
|
Orientações diferentes
........................................................................
|
73
|
VIII
|
A Maturidade Religiosa
presente no Fenômeno Religioso-Mágico ..........
|
75
|
|
IX
|
CONCLUSÃO
...............................................................................................
|
81
|
|
|
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
........................................................
|
83
|
|
|
ANEXOS
........................................................................................................
|
84
|
|
|
I
|
A Dinâmica
Magia/Religião...............................................................
|
85
|
|
II
|
Características da Maturidade Religiosa
..........................................
|
86
|
|
III
|
O espírito e a alma. Objetos de investigação científica
....................
|
87
|
|
IV
|
A religião como fato psicológico
........................................................
|
88
|
I INTRODUÇÃO.
Em
nosso mundo, tido como secularizado, período em que vivemos uma nova era
sistemática, influenciada pela globalização e pela síndrome da pós-modernidade,
que avança assustadoramente para a pós-cristandade, presente já em várias parte
do globo, percebemos que mesmo diante de tão emergente avanço científico em
todas as áreas ainda denuncia a indiferença religiosa e o abandono das práticas
tradicionais, há homens, mulheres, jovens e velhos que continuam a crer, que
dirigem suas preces a Deus, aderem a uma religião. Outros, no entanto, recusam
qualquer crença religiosa ou parecem desinteressar-se delas. Surge assim uma
questão, dirigida a todos interessados no assunto em voga que se interrogam
sobre essa situação de fato e se perguntam qual é a sua significação exata.
Dentre muitos citamos Freud, Luiz Gonzaga de Mello, Bernardo Bernardi, Ralph
Linton, Clifford Geertz, Jean-François Catalan, Orlo Strunk Jr, Jung, Fromm,
James, Allport, Frankl, que procuraram através de seus artigos literários
esgotar a questão em pesquisa.
No entanto nossa intenção é que
inspirados nos trabalhos desses autores, tentamos traçar algumas pistas,
balizar o caminho, oferecer alguns pontos de referência, por onde, veremos a
princípio alguns conceitos fundamentais de propriedade da área antropológica,
destacando suas utilidades, qualidades distintivas, subdivisões, partindo daí
para uma análise antropológica quanto ao fenômeno religioso-mágico, sob os
diversos olhares científicos, procurando destacar em cada um deles os pontos
cruciais, e assim expormos a veracidade
dos fatos relacionados à religião, ritos, mitos, possessões; trabalhando a
questão etnema religioso, com os teísmos existentes, a conservação e reforma
religiosa, prosseguindo para uma discussão quanto a classificação como sistema
cultural, confrontando religião e mística, chegando então a uma maturidade
religiosa presente no fenômeno religioso-mágico.
“ A [religião ]pura e imaculada
diante de nosso Deus e Pai é esta: Visitar os órfãos e as viúvas nas suas
aflições e guardar-se isento da corrupção do mundo.”
(S.
Tiago 1:27)
II ANTROPOLOGIA.
2.1 Antropologia – o Estudo da Humanidade.
É uma
característica do ser humano desejarem as pessoas se conhecer a si mesmas. Por
isso, mesmo sem outro motivo a não ser dar satisfação à nossa curiosidade de
investigação, a humanidade merece ser estudada por si mesma. Entretanto,
existem mais possibilidades no estudo da humanidade. Uma compreensão
aprofundada de nós mesmos, adquiridos por nós mesmos, pode aumentar nossas
capacidades básicas de orientar o nosso futuro com maior inteligência a
respeito do destino que queremos atingir e sobre a maneira de o alcançarmos.
Conhecendo a humanidade, podemos compreender mais eficientemente os problemas
humanos e o modo de enfrentá-los.
A antropologia tem poucas respostas
finais, mas projeta a luz do fato e da razão em muitas questões prementes.
Há, por exemplo, universais no
comportamento da humanidade? A família é necessária? Há maneiras “melhores”,
isto é, mais felizes e mais satisfatórias socialmente de as pessoas
amadurecerem e criarem os filhos do que as que a família nuclear contemporânea
oferece? Há uma maneira melhor de utilizar o nosso ambiente e os nossos
recursos naturais do que a de que estamos sendo testemunhas em início do século
XXI? É sensato promover uma agricultura mais eficiente, medidas modernas de
saúde e de saneamento, tecnologia avançada, a monogamia, o planejamento
familiar, uma educação mais elevada em áreas e sociedades que existem de há
muito sem tudo isso? Há denominadores comuns nos valores humanos e nos sistemas
de controle social que tornam possível o ideal de uma lei mundial? Ou há um
instinto básico agressivo, “imperativo territorial”, ou outro fator
profundamente arraigado que torna a consecução dessa finalidade totalmente
inexeqüível? A violência é onipresente? A guerra é inevitável? Quando os seres
humanos saem a colonizar novos mundos no espaço, há normas ou valores da
passada Idade Glacial e do presente caótico – os cinco milhões de anos da
experiência humana – que eles devam levar consigo? Em caso afirmativo, quais
são essas normas e esses valores?
Os antropólogos chegaram agora a um
conhecimento bem definido de como eram os seres humanos primitivos; sabe-se até
mesmo bastante sobre seus processos de pensamento, suas criações, suas “religiões”,
se assim nos podemos expressar. É de esperar que o futuro veja transformações
igualmente radicais na psique humana, na fisionomia, na capacidade do cérebro?
Ou os seres humanos estão agora biologicamente “completos”, “acabados”? Já
“foram até onde podiam ir”, falando do ponto de vista da evolução?
Que é que o separa do resto do mundo
animal? O uso de instrumentos? O desenvolvimento da linguagem? Certa tendência
para a religião? .
2.2 A utilidade da antropologia.
Vê-se a
utilidade e a relevância da Antropologia na busca geral de um conhecimento mais
profundo da natureza humana e de seu comportamento pelo rápido desenvolvimento
que ela teve como disciplina acadêmica.
Além do seu avanço nos meios
acadêmicos, nas escolas secundárias e até em escolas elementares, tanto os
métodos quanto os conceitos da Antropologia têm causado um impacto visível nas
ciências naturais e físicas, nas ciências sociais, nos negócios e no Governo.
Termos como “cultura primitiva”, “relatividade cultural”, “método comparativo’
e “choque de cultura” não são mais de propriedade especial dos antropólogos. O
Corpo da Paz tem recentemente infundido nos seus voluntários as culturas
básicas dos povos que eles procuram ajudar.
A Antropologia Cultural é agora
amplamente aceita e é considerada indispensável para o treinamento de
profissionais de saúde pública; foi reconhecida ultimamente pelos Institutos
Nacionais de Saúde dos Estados Unidos como ciência básica, relacionada com a
Medicina.[2]
Mudar os métodos de uma sociedade
conseguir alimentos, modificar seus hábitos alimentares, suas práticas de
saneamento e o tamanho de sua família ideal não são projetos que podem ser
levados a efeito com facilidade, mesmo para finalidades tão elevadas como maior
longevidade, melhor saúde e menos sofrimento físico.
Mas a Antropologia tem outras
finalidade e funções e causa outros prazeres além de fornecer orientação
àqueles que iriam transformar o mundo. Basicamente, sua finalidade é explorar a
natureza do homem, como criatura que está em evolução, criatura presa a uma
cultura, vivendo em sociedades organizadas – cada indivíduo diferente do outro,
mas semelhante sob muitos aspectos.
2.3 As Qualidades Distintivas da Antropologia.
A humanidade é uma parte da natureza – do universo com todos os seus
fenômenos. O estudo da humanidade, chamado Antropologia (Gr. Antropos, homem + logia, estudo),
quando seguido de acordo com os princípios e métodos científicos, é conseqüentemente
uma ciência natural. Um de seus ramos trata da origem evolutiva, da estrutura
física e dos processos fisiológicos da humanidade. Mas a Antropologia abrange
muito mais do que apenas o estudo da história natural da natureza física do
homem, porque o ser humano é também um animal que produz cultura. Por isso, a
Antropologia é a ciência da humanidade e da cultura. Como tal é uma ciência
superior social e comportamental, e mais, na sua relação com as artes e no
empenho do antropólogo de sentir e comunicar o modo de viver total de povos
específicos, é também uma disciplina humanística.
Os antropólogos estudam os seres
humanos onde quer que os encontrem – nas neves árticas ou nas regiões
desérticas; nas planícies temperadas, nas regiões florestais e nas selvas
verdejantes. Buscam seus restos nos locais pré-históricos, e realizam estudos
de campo ao vivo sobre as aldeias primitivas e sobre os ambientes urbanos das
civilizações modernas. A Antropologia se ocupa tanto do homem fóssil como das
pessoas vivas. Ela, na palavra de Clyde Kluckhohn, “apresenta um grande espelho
ao homem e deixa que ele olhe a si mesmo
na sua infinita variedade”.[3]
As fronteiras da Antropologia vão
desde os relatórios de pesquisa até as análises profundas do que se encontra
atrás das aparências, até as questões da evolução humana, da motivação, da
estrutura social, e da função.
2.4 O estudo da humanidade como um todo.
Em primeiro lugar, a Antropologia fixa como seu objetivo o estudo da
humanidade como um todo. Nenhuma outra disciplina especializada, professa
pesquisar sistematicamente todas as manifestações do ser humano e da atividade
humana de uma maneira unificada.
O ser humano é um animal que cria
cultura e está preso a uma cultura. Segundo o geneticista Theodosius Dobzhansky
“a evolução humana só pode ser entendida como produto da interação destes dois
desenvolvimentos”[4]. Aqui
está a unidade biológica e social da humanidade. Uma proposição fundamental da
Antropologia é que nenhuma parte pode ser entendida plenamente, ou mesmo com
exatidão, se separada do todo. E, de modo inverso, o todo não pode ser
percebido com exatidão sem um conhecimento profundo e especializado das partes.
Para compreender qualquer aspecto do comportamento sexual humano, por exemplo,
deve-se examina-lo em termos de genética, fisiologia, características
climáticas, sistema de valores e estruturas técnicas, econômicas, de
parentesco, religiosas e políticas de cada sociedade humana. A Antropologia
toca em virtualmente todos os campos possíveis do conhecimento, aproveita-se
deles e neles se inspira. A unidade da disciplina é mantida pela concentração
no caráter global do homem e da cultura.
2.5 O conceito de cultura.
A segunda característica distintiva da Antropologia o seu desenvolvimento
do conceito de cultura e a importância deste conceito no pensamento
antropológico. Cultura é o sistema integrado de padrões de comportamento
aprendidos, os quais são característicos dos membros de uma sociedade e não o
resultado de herança biológica. É o resultado da invenção social e é
transmitida e aprendida somente através da comunicação e da aprendizagem.
Estes são os componentes essenciais
do conceito de cultura, tal como o termo é correntemente usado pela maioria dos
antropólogos. Outras formulações são, naturalmente, possíveis. Assim, Kroeber e
Kluckhohn, depois de examinar e avaliar umas quinhentas formulações e empregos
do conceito, deram a seguinte definição: “A cultura consiste em padrões,
explícitos e implícitos, de comportamento e para comportamento, adquiridos e
transmitidos por símbolos, que constituem as realizações distintivas dos grupos
humanos, inclusive suas incorporações em artefatos; o núcleo essencial da
cultura consiste nas idéias tradicionais (isto é, recebidas e selecionadas
historicamente) e especialmente nos valores que se lhes atribuem; por outro
lado, os sistemas de cultura podem ser considerados como produtos de ação e
também como elementos condicionantes de ação futura”[5].
III SUBDIVISÕES
DA ANTROPOLOGIA.
A Antropologia é tão diversificada que, para alcançar precisão, seus
profissionais devem necessariamente especializar-se. Os dois aspectos
essenciais da Antropologia são o biológico e o cultural; daí, suas duas
subdivisões principais, 1. Antropologia Física e 2. Antropologia Cultural. Cada
uma dessas subdivisões tem, por sua vez, grande número de subdivisões
especializadas.
3.1 Antropologia Física.
O ser humano é antes de tudo um organismo biológico, e, só
secundariamente, um animal social. O estudo da natureza do organismo humano
através da Antropologia Física é, portanto, básico para entender a natureza do
ser humano. O objetivo da Antropologia Física é desenvolver um conhecimento
preciso do corpo com referência às características biológicas das populações,
antigas e modernas. Naturalmente, só através do estudo de pessoas vivas ou
recém-falecidas é que os antropólogos físicos podem conhecer a estrutura, o
crescimento e a fisiologia do corpo humano nos seus mínimos detalhes.
3.2 Antropologia Cultural
Este ramo da Antropologia, que trata das características do comportamento
civilizado nas sociedades humano passadas, presentes e futuras, é conhecido
como Antropologia Cultural. Esta, por sua vez, tem muitas subdivisões, das
quais as mais notáveis são a arqueologia, a etnografia, a etnologia e a
antropologia social.
A
Antropologia Cultural tem, por seu lado, um campo de interesse muito mais amplo
que as disciplinas afins no campo das ciências sociais e das humanidades, cada
uma das quais apenas se ocupa de um segmento da atividade humana. O antropólogo
cultural estuda em geral povos que se acham fora da corrente da história
cultural européia, e procura investigar, até onde for possível, um determinado
corpo de costumes, como um todo. Ou, se concentra sobre um aspecto dessa
cultura, seu objetivo principal é a análise da inter-relação desse aspecto com
as outras fases da vida do povo. Ao visar uma cultura em seu conjunto, estuda a
sua tecnologia e a vida econômica, as instituições sociais e políticas, a
religião, o folclore e a arte. Ademais, não se limita a analisar cada um desses aspectos para
distingui-los dos outros, mas considera-os
como formando um sistema funcional que adapta o povo a seu meio. Vemos
aqui como o antropólogo difere do economista, do político teórico, do
sociólogo, do que se dedica ao estudo comparado das religiões, da arte ou da
literatura.
As religiões só sobrevivem
pela arte; só ela torna os deuses verdadeiramente imortais – dando-lhes forma -
Eça de Queirós.
Mas na história não se encontra nenhuma religião sem Igreja... Não existe
uma Igreja mágica. Émile Durkheim.
Não é fácil compreender por
que um instinto humano profundamente radicado deveria ter necessidade de ser
reforçado pela lei. S.
Freud.
Qualquer tentativa de falar num idioma particular
não tem maior fundamento que a tentativa de ter uma religião que não seja uma
religião em particular... Assim, cada religião viva e saudável tem uma
idiossincrasia marcante. Seu poder consiste em sua mensagem especial e
surpreendente e na direção que essa revelação dá à vida. As perspectivas que
ela abre e os mistérios que propõe criam um novo mundo em que viver; e um novo
mundo em que viver – quer esperemos ou não usufruí-lo totalmente – é justamente
o que desejamos ao adotarmos uma religião. Santayana, Reason in Religion.
IV - O FENÔMENO RELIGIOSO-MÁGICO
SEGUNDO LUIZ
GONZAGA DE
MELLO.
4.1 Considerações Iniciais.
Mesmo não ocupando um lugar de
realce igual ao tema do parentesco, não se pode dizer que a religião não tenha
despertado o interesse dos etnólogos. Não há dúvida de que o assunto atinente à
religião e à magia sempre mereceu a atenção dos antropólogos desde o início.
Talvez isso se deva ao fato de ter sido no campo religioso onde os estudiosos
encontraram maior soma de exotismo. Um outro fator que deve ter influído nesta
preocupação com os temas religiosos talvez tenha sido o clima intelectual do
século XIX. Era muito comum, então, contrapor ciência à religião, razão à fé. O
clima intelectual da época era mais ou menos de acordo com o esquema comtiano
da “lei dos três estados”. Como é
sabido, Comte acreditava que a humanidade, em geral, passara por três estados
diferentes de pensamento lógico. O primeiro desses estados teria sido o
teológico em que os homens explicavam tudo pela fé ou pelas razões
religioso-místicas; o segundo estado, o filosófico, aquele período em que os
homens evoluíram um pouco e passaram a dar explicações metafísicas para as
questões fundamentais que enfrentavam; por fim, vinha o terceiro estado, o
científico ou positivo, em que o homem, abandonando as explicações mirabolantes
da religião e os sofismas da metafísica, passou a preocupar-se com as
explicações factuais do conhecimento experimental.
Com pequenas variações, este era o
quadro em que se colocara a religião. De certo modo, os estudos etnográficos
sobre o assunto vieram, por assim dizer, corroborar no julgamento que se fazia
da atividade religiosa em geral. Contudo, pode-se perceber que os antropólogos
podem ter sido influenciados por estas concepções nos seus estudos sobre o
exotismo religioso dos povos simples ou de pequena escala. Isto quer dizer que
alguns antropólogos ao estudarem o tema iam, de antemão, armados de
preconceitos contra as práticas religiosas “selvagens”.
Os pressupostos evolucionistas, portanto, levaram muitos estudiosos a verem na
atividade religiosa uma das atividades mais antigas e rudimentares da
humanidade. A preocupação dominante era, pois, analisar ou descobrir a origem
da religião.
Esta visão, contudo, foi-se
modificando e hoje a antropologia cultural conta com muitos estudos sobre o
assunto. A visão funcionalista, apesar de suas limitações, veio acrescentar
alguma coisa ao estudo da religião. A tradição americana com os seus trabalhos
de campo também trouxeram muita contribuição e subsídio ao estudo do tema.
Ultimamente, os estudos antropológicos sobre a religião têm dado muita atenção
ao seu caráter simbólico.
Este trabalho propõe-se oferecer um
quadro geral dos temas ligados à religião e tradicionalmente tratados pelos
manuais e ensaios antropológicos. Os temas principais ligados ao assunto “religião” são, religião e magia, ritual
e doutrina (rito e mito), totemismo, xamanismo, etc. aqui acrescentaremos
alguns tópicos que dizem respeito a temas ligados ao Brasil e à sua realidade,
tais como: religiões populares e cultos afro-brasileiros.
4.2 Conceito de Religião.
O conceito de “religião” está
muito relacionado com o quadro de referência teórica utilizado. Muitas tem sido
as definições apresentadas. Muitos foram os estudos até agora realizados sobre
o assunto e longe se está de chegar a um consenso. Contudo, a antropologia
cultural já conta com lastro razoável que permite relacionar uma série de
tópicos e teorias a respeito do assunto. Não são estudos conclusivos, mas já se
fez muito progresso. Depois de analisar as várias teorias sobre a “religião”, Evans-Pritchard não parece
muito otimista como se pode observar no texto abaixo:
...devo admitir que não
encontro, no conjunto das diferentes teorias que revisamos, quer em cada uma
delas, isoladamente, quer no todo, muito mais do que simples especulações do
senso comum, o que, na maioria das vezes, erra o alvo.[6]
Não resta dúvida de que o autor está
sendo pessimista demais. Afinal, não há leis tão seguras no comportamento
humano. O problema, ao nosso ver, é que o isolamento da religião deve ser visto
como um recurso didático e metodológico e nunca como uma atividade isolada
dentro do padrão geral da cultura. Como já se viu, não é fácil separar o
parentesco da vida política nem econômica dos povos de pequena escala. Nas
sociedades modernas torna-se bem mais fácil isolar as atividades, mas mesmo
assim sabe-se que no casamento, por exemplo, encontram-se aspectos jurídicos
(contrato celebrado entre os cônjuges), aspectos religiosos (o matrimônio como
sacramento) e políticos, só para citar três setores da cultura. Esta
inter-relação é mais evidente ainda entre os povos segmentares ou de pequena
escala.
Embora se reconheça que o padrão
religioso é universal (não se tem conhecimento de povo que não tenha suas
crenças e não realize seus rituais), há, sem dúvida, uma variedade muito grande
nesse padrão de comportamento. Relacionada com a unidade política, nem sempre
uma religião é nacional. Há casos em que para uma unidade existe uma só
religião; noutros, nesta mesma unidade política coexistem várias religiões,
noutros mais, uma religião de caráter universalista pode estar presente em
várias unidades políticas. Mas as diferenças não se resumem apenas na amplitude
das instituições religiosas. Dizem respeito à cosmovisão adotada pelo povo, à
variedade de doutrinas, de mitos e de rituais adotados.
Edward Tylor deu uma das mais curtas
definições de religião: “uma crença no sobrenatural”.[7] Aí
se encontram dois elementos importantes presentes, de maneira implícita ou
explícita, em todas as religiões: a fé e o objeto da fé, o sobrenatural. Com
relação à fé, sabe-se que a religião conta com um corpo doutrinário, um
verdadeiro sistema de mitos. A crença é antes de tudo um ato de confiança, de
respeito e reconhecimento. A fé ou a crença, em certo sentido, é mais forte do
que o conhecimento. A fé foi bem definida por S. Agostinho quando disse o “creio porque é absurdo”. A crença, pois,
não supõe a compreensão e o conhecimento. Bem ao contrário, ela existe para
suprir a falta de entendimento em muitos problemas existenciais humanos. Como
se vê, a fé é a aceitação de certos enunciados tipos como certos e corretos,
não porque sejam de fácil compreensão, mas porque alguém deu o testemunho de
que são verdadeiros. É verdade que este conceito de fé é típico das religiões
tidas como reveladas. No entanto, todas elas, em geral, de uma forma ou de
outra são frutos da revelação.
O outro ponto da definição de Tylor
– o sobrenatural – é decorrente do primeiro ou, vice-versa, este daquele. Isto
quer dizer que o sobrenatural pode ser definido por exclusão: tudo aquilo que
escapa ao entendimento humano, tudo o que está acima das leis naturais e
físicas. Para os crentes, aqueles que crêem, o sobrenatural é uma outra
dimensão da vida e, por sinal, a mais importante, a mais humana de todas. É bem
possível que a concepção do sobrenatural tenha decorrido da constatação dos
vários conflitos que acompanham o existir humano. De há muito, a humanidade se
vê diante do binômio conflitante do bem e do mal, do certo e do errado; há quem
assegure que o problema do bem e do mal perpassa toda a realidade humana. Uma
coisa parece correta: é que o problema do bem e do mal está na raiz do problema
do sobrenatural. É verdade que algumas religiões identificam o bem com o
natural, com aquilo que está em conformidade com a natureza. Diz-se, por vezes,
que muitas religiões “primitivas” são naturais, cultuam a natureza e suas
dádivas. Acontece que neste caso dá-se a supernaturalização do natural. O
trovão, a chuva, a fertilidade do solo e bonança dos rios são apresentados como
manifestações sobrenaturais de deuses e entidades sobrenaturais nem sempre bem
definidas. Como se percebe, a idéia de sobrenatural pode variar de cultura para
cultura. Para nós ocidentais, o sobrenatural é tudo que escapa ao âmbito da
natureza. No entanto, o próprio conceito de natureza se tem elastecido
ultimamente com os progressos realizados pela técnica e pela ciência. Muitos
povos tiveram o sol e a lua na conta de divindades. Somos levados a ver nisso
atraso e ignorância. Contudo, longe está o homem de afastar de seu caminho as
incertezas, os motivos de temores e a estupefação do desconhecimento e do
inaceitável. Quem, mesmo hoje, não se comove com o nascimento de um novo ente?
Quem não estremece face à morte de amigos e parentes? Quem não se preocupa com
o post mortem?
Quando se diz que o sobrenatural é
um elemento comum a todas as religiões, não se está a afirmar que todas elas
cultuem divindades antropomórficas. Como já foi dito, a concepção do
sobrenatural varia muito de sociedade para sociedade. No entanto, em todas elas
se faz uma distinção entre o sagrado e o profano. É nessas duas noções que
Durkheim estriba sua definição de religião. Este autor critica as definições de
religião que repousam na crença no sobrenatural, bem como aquelas que definem a
religião como uma crença em divindades ou sobrenaturais. Criticando este
segundo tipo de definição, lembra Durkheim que religiões que não admitem a
existência de divindades ou, quando admitem, o fazem de maneira subsidiária, de
forma secundária. O budismo é apresentado como exemplo.[8]
Analisando
o problema da religião, este autor procura estudar o fenômeno religioso de
forma científica, vendo-o como fato social. Nota inicialmente que em qualquer
que seja a religião, primitiva ou moderna, dois elementos despertam a atenção
do observador: as crenças e os ritos. Um outro elemento importante no fenômeno
religioso é o da classificação das coisas em sagradas e profanas. Eis o que diz
o autor a respeito:
Os fenômenos religiosos
colocam-se naturalmente em duas categorias fundamentais: as crenças e os ritos.
As primeiras são estados de opinião e consistem de representações; as segundas
constituem tipos determinados de ação. Entre estas duas ordens de fato está
toda a diferença que separa o pensamento do movimento.
Os ritos podem ser definidos
e distinguidos das outras práticas humanas, especialmente daquelas morais,
apenas pela natureza particular do seu objeto. Uma lei moral se prescreve de
fato, exatamente como um rito, são modos de agir que se voltam porém a objetos
de um gênero diverso (...).
Todas as crenças religiosas
conhecidas, sejam elas simples ou complexas, têm um mesmo caráter comum:
pressupõem uma classificação das coisas reais ou ideais que se apresentam aos
homens, em duas classes ou em dois gêneros opostos, definidas geralmente com
dois termos distintos – traduzidos bastante bem pelas designações de profano e sagrado. A divisão do mundo
em dois domínios que compreendem um: tudo é sagrado, e o outro: tudo o que é
profano, é o caráter distintivo do pensamento religioso: as crenças, os mitos,
as gnomas, as lendas são representações, ou sistemas de representações que
exprimem a natureza das coisas sacras, as virtudes e os poderes a elas atribuídos,
sua história, suas relações recíprocas e com as coisas profanas. Mas por coisas
sagradas não é preciso entender apenas aqueles seres pessoais que vêm
denominados com deuses ou espíritos: uma rocha, uma árvore, uma fonte, uma
pedra, um pedaço de lenha, uma casa, um suma, qualquer coisa pode ser sagrada.[9]
Essa distinção feita por Durkheim,
na verdade, ajuda muito a se entender o fenômeno da religião. As coisas
sagradas são, por exemplo, os objetos do culto, as pessoas do culto e os
próprios seres cultuados. Todos nós percebemos que a água benta dos católicos
tem um significado bem diverso da água comum. A pessoa do sacerdote inspira um
respeito especial para os fiéis. O mesmo se diga de uma pedra de corisco tida
como receptáculo ou materialização de um orixá, para o culto nagô. As coisas
sagradas, por sua vez, exigem uma certa postura de respeito e apresentam, quase
sempre, uma característica de tabu. Não se deve tocá-las impunemente, não se
deve delas comer a não ser em certas circunstâncias, dentro do cerimonial em
geral.
Como o próprio Durkheim reconhece,
estas características do fenômeno religioso – doutrina, rito e a classificação
do sagrado e do profano – ainda se mostram insuficientes para determinar o
fenômeno. Como diz o autor, “a magia é constituída também ela de crenças e de
ritos”. Como, pois, distinguir a religião da magia? Alguns autores, como se
sabe, preferem não distinguir esses dois fenômenos. Chegam a falar de um
fenômeno mágico-religioso. Com efeito, observando determinados rituais
católicos, por exemplo, nota-se que são muito semelhantes aos ritos mágicos. O
batismo realmente válido e eficaz é necessário que o sacerdote cumpra o ritual
fazendo uso correto das fórmulas (palavras) e da matéria. Assim, para que a
criança seja batizada convenientemente é mister que o padre enquanto derrama a
água lustral na cabeça da criança pronuncie as palavras “mágicas”, “Eu te batizo em
nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo”. Quando dizemos isto de forma
assim tão fria, pode ferir a sensibilidade dos católicos. Isso acontece porque
juntamente com o cerimonial está a crença da doutrina; e a fé não discute,
aceita os ensinamentos.
Porém, voltando ao nosso problema,
como distinguir a magia da religião? Durkheim mostra como, apesar da semelhança
gritante entre ambas, a religião tem um caráter associativo e a magia, ao
contrário, se caracteriza muito mais pelo individualismo. Diz ele:
“Como
a religião, esta (a magia) tem os seus ritos e os seus dogmas, que são apenas
mais rudimentares porque, perseguindo fins técnicos e utilitários, não perde
tempo em puras especulações (...).”
Será necessário, portanto, dizer que
a magia não pode ser distinguida exatamente da religião, que a magia está cheia
de religião e a religião de magia e que, portanto, é impossível separa-las e
definir uma sem a outra. O que torna esta tese dificilmente sustentável é a
profunda aversão da religião à magia, e doutra parte a hostilidade desta por
aquela. A magia deposita uma espécie de prazer profissional no profanar as coisas
santas; nos ritos esta assume uma posição oposta àquela das cerimônias
religiosas. De sua parte a religião, embora não tendo sempre condenado e
proibido os ritos mágicos, os vê em geral desfavoravelmente.
E propõe uma demarcação entre ambas.
As crenças propriamente religiosas
são sempre comuns a uma coletividade determinada, que faz profissão de a elas
aderir e de praticar os ritos a elas ligados. Elas não são admitidas apenas a
título individual por todos os membros desta coletividade, mas são coisas do
grupo e constituem a unidade. Os indivíduos que a compõem sentem-se ligados uns
aos outros pelo simples fato de ter uma fé comum. Uma sociedade, na qual
membros são unidos pelo fato de se representarem do mesmo modo o mundo sagrado
e as suas relações com o mundo profano, e de traduzir estas representações
comuns com práticas idênticas, é denominada “igreja”. Mas na história não se encontra nenhuma religião sem
igreja (...).
Não existe uma igreja mágica. Entre
o mago e os indivíduos que o consultam, como entre este últimos, não
subsistem vínculos duráveis que façam os
membros um mesmo corpo moral, comparável àquele que formam os fiéis de um mesmo
deus, ou os sequazes de um mesmo culto. O mago tem uma clientela, não uma
igreja; e os seus clientes podem perfeitamente não ter entre si qualquer
relacionamento, ao ponto de ignorar-se um ao outro: também as relações que ele
tem são geralmente acidentais e transitórias, de todo semelhantes àquelas de um
doente com seu médico.
4.3 Teorias da Religião.
Não se deseja neste tópico discutir
todas as teorias até hoje apresentadas sobre o fenômeno religioso. Contudo,
sentiu-se a necessidade de apresentar um esboço de algumas delas, de modo a
tornar mais completo o presente capítulo. Evans-Pritchard apresenta, em seu Theories
of Primitive Religion, uma série de conferências onde discute as principais
teorias sobre a religião primitiva. Aí ele divide a matéria em: Teorias
Psicológicas, Teorias Sociológicas, Lévi-Bruhl e conclusão. Aqui será seguido
mais ou menos o mesmo esquema.
4.3.1 Teorias Psicológicas.
São assim chamadas aquelas teorias
que, de alguma forma, procuram explicar o fenômeno religioso a partir dos
sentimentos. Essas teorias têm, em geral, um caráter intelectualista e sofrem a
influência da “psicologia associacionista”,
para usar a expressão de Evans-Pritchard. Figuram na relação apresenta das
teorias psicológicas apresentadas por este autor, entre outras, as seguintes: a
escola do mito natural de tradição alemã, a crença em fantasma de Spencer, o
animismo de E. Tylor, a teoria da magia de Frazer, o animatismo de Marrett e a
contribuição de Lowie.
A escola do mito natural está muito
ligada a Max Muller. Sua tese principal é assim referida por Evans Pritchard:
Sua tese era de que os
deuses da antiguidade – e por extensão os deuses de todos os tempos e lugares –
eram apenas fenômenos naturais personificados: sol, lua, estrelas, o alvorecer,
a renovação da primavera, rios caudalosos, etc.[10]
Conforme nosso autor, como ele
explica a seguir, Max Muller não pretendeu afirmar que os homens criaram a
religião simplesmente a partir da deificação dos fenômenos naturais, mas é que
estes fenômenos de sua magnitude e beleza despertaram nos homens sentimentos “de infinitude e serviam de símbolos para o
infinito”. Acrescenta nosso autor:
Sua tese (de Max Muller) era
de que o infinito, uma vez nascida a idéia, não poderia ser pensado senão em
termos de metáforas ou símbolos, os quais só poderiam ser derivados do que
parecesse majestático no mundo conhecido: os corpos celestes ou seus atributos.
Mas estes atributos, então, perdiam seu sentido original, metafórico, e
adquiriam autonomia, tornando-se personificados como deidades de exigência
própria. Os nomina (nomes) se
tornavam numina (divindades).
Assim, sendo, as religiões poderiam ser descritas como sendo ‘doenças da
linguagem’, uma expressão vigorosa mas infeliz, que mais tarde Muller tentou
explicar, mas não teve vida longa[11]
Quanto às teorias de Spencer e de
Tylor, ambas são semelhantes. Admitem que o homem primitivo seja racional,
embora, devido a seu estágio de desenvolvimento, não tenha o raciocínio tão
vivo como nós. Spencer acreditava que a primeira ou as primeiras noções
religiosas conhecidas pelo homem tenham sido as de fantasmas, enquanto Tylor
acreditava que teria sido a noção de almas. Para ambos, tais noções teriam
nascido da própria consciência humana frente aos fenômenos do sonho, da morte,
da vida, das transformações naturais, todo esse conjunto teria despertado os
sentimentos do sagrado e da outra dimensão da vida. Sobre a teoria do animismo
de Tylor escreveu Pritchard:
Nos textos antropológicos, a
palavra ‘animismo’ aparece com alguma ambigüidade, sendo às vezes empregada no
sentido de uma crença, atribuída a povos primitivos, em que não só as criaturas,
mas também os objetos materiais estão dotados de vida e personalidade, algumas
vezes com o acréscimo de que tenham também almas.”
A teoria de Tylor cobre
ambas as possibilidades, mas aqui nos interessa basicamente a segunda delas. A
este respeito a teoria conta com duas teses principais, a primeira concernente
ao problema da origem, e a segunda referindo-se ao desenvolvimento da alma. As
reflexões do homem primitivo a respeito de experiências tais como morte,
doenças, transes, visões e, acima de tudo, os sonhos, levaram-no à conclusão de
que são fenômenos que se devem à presença ou ausência de alguma entidade
imaterial, a alma .Tanto a teoria do fantasma quanto a teoria da alma poderiam
ser consideradas como versões de uma teoria ideal da origem da religião.[12]
Frazer, por seu turno, apresenta uma
teoria, em parte semelhante à de Auguste Comte acerca do progresso da
humanidade (lei dos três estágios ou estados: estágio teológico, metafísico e
positivo ou científico). Para Frazer, a humanidade universalmente passou por
três estágios diversos: o primeiro dominado pela magia, o segundo pela religião
e finalmente pela ciência. A rigor, vê-se, que não há muito de novo em sua
teoria. Importa, aqui, fazer uma pequena análise dos fundamentos psicológicos
dessa sua teoria. Este autor achava que a magia e a ciência se assemelhavam e
se contrapunham à religião. Tanto a magia como a ciência realizam operações
técnicas, pois acreditam que o mundo obedece a preceitos ou leis invariáveis;
ao passo que a religião acredita, segundo ele, que o mundo vai mais além e está
sujeito aos “caprichos dos espíritos”.
A diferença básica entre a magia e a ciência é que a primeira é uma técnica
enganosa e errada e a segunda, ao contrário, é verdadeira e baseada na
experimentação. A religião, por sua vez, exige dos seus cultores uma atitude de
medo e temor, de respeito e dedicação. Os seguidores da magia e da ciência,
todavia, apresentam uma atitude psicológica de arrogância, de confiança e
destemor.[13]
Depois de tantas teorias semelhantes
que tomaram o homem “primitivo” como
um filósofo ingênuo, surge a teoria de Marrett que veio inverter a ordem da
explicação do fato religioso. Para ele a religião primitiva tivera início não
na doutrina ou na crença, mas a doutrina teria nascido da ação. Como dizia, “a religião selvagem não é tão pensada quanto
dançada”. Como se percebe, Marrett deu a prioridade do rito sobre o mito,
exatamente o contrário que se tinha feito até então. Ele acreditava que antes
do estado animístico teria existido um estado anterior em que se acreditava que
certas pessoas e certas coisas possuíam um poder oculto, uma espécie de força
ou magnetismo. A existência desta força é que dava o caráter sagrado às coisas
e às pessoas. Este autor não via muita diferença entre religião e magia entre
os primitivos. A sua explicação era do cunho emocionalista. Dizia que a magia
surgira de momentos de grande tensão, ódio, amor ou temor em que o primitivo se
via privado de meios capazes de o satisfazer. Destarte lançou mão de
fingimento, expedientes simbólicos e associativos para fazer face às suas
necessidades concretas. A teoria de Marrett é conhecida como animatismo[14]
em oposição ao animismo de Tylor.
Lowie também aparece com certa
novidade com sua teoria acerca da religião. Como os demais, sua fundamentação é
igualmente de cunho psicológico, porém outra visão sobre o assunto. Segundo
ele, a doutrina, em si, bem como o cerimonial, não são religiosos. “Não há comportamento especificamente
religioso, mas sim sentimentos religiosos”. Poder-se-ia dizer que só existe
o fenômeno religioso no momento em que se tem o sentimento que leva ao
entendimento, ao sentimento de fé no extraordinário, no sobrenatural, no santo,
etc. Em conseqüência o indivíduo entrega-se a ritos que podem até aumentar este
complexo de sentimentos. A respeito do pensamento do Robert H. Lowie diz
Evans-Pritchard:
O positivismo, o
igualitarismo, o absolutismo e o culto da razão são indistinguíveis da
religião; mais: a bandeira de um país é um típico símbolo religioso. Quando a
magia se associa à emoção passa a ser, também ela, religião. De certo modo,
seria um equivalente psicológico de nossa ciência, como disse Frazer.[15]
Não se pode negar o valor dessa
teoria no que respeita à constatação fática, isto é, todos sabemos que o
fanatismo excede o campo do religioso tradicional. A guerra, por exemplo, faz
tantos mártires quanto às religiões nascentes quando são perseguidas. A
dedicação do homem de ciência e de laboratório só se torna possível pela fé que
ele demonstra em seu trabalho. Porém, também esta teoria peca pelo pouco valor
operacional de seus conceitos. Torna-se difícil realizar estudos e pesquisas
com estas teorias de cunho psicológico.
4.3.2 Teorias Sociológicas.
A essas teorias não se dará aqui
muito espaço. Não que sejam de pouca monta. Em absoluto. Já lhes foi dado algum
espaço principalmente à teoria de Durkheim. As principais teorias sociológicas
da religião são: a de Fustel de Coulanges e R. Smith, a de Durkheim e seus
seguidores: Marcel Mauss e Radcliffe-Brown. O que caracteriza estas teorias é a
fundamentação da explicação a respeito do fenômeno religioso: este é
apresentado como fenômeno social e não como fenômeno psicológico, como salienta
Evans-Pritchard:
Notemos que Durkheim não
está dizendo aqui, como fazem os autores emocionalistas, que os ritos são
levados a efeito para liberar estados emocionais exaltados. São os ritos que
produzem tais estados. Eles podem, portanto, neste aspecto, ser comparados aos
ritos expiatórios como os de luto, nos quais as pessoas procuram afirmar a sua
fé e cumprir um dever para com a sociedade sem que estejam sob qualquer tensão
emocional; esta, enfim, pode estar completamente ausente da ocasião.[16]
A teoria de Fustel de Coulanges,
mestre de Durkheim, procura mostrar como a organização social existente na
antiguidade clássica teve como amálgama o culto dos ancestrais. Os antepassados
pareciam como deidades que traziam unido o grupo familiar ou de descendência.
Segundo Coulanges este culto é que explicava as normas e cerimônias de casamento,
o incesto, a monogamia, a proibição do divórcio, etc.
Para corroborar o que afirma nosso
autor, eis aqui uma passagem significativa do livro clássico de Coulanges, A
Cidade Antiga:
A origem da família antiga
não está unicamente na geração. A prova disso temo-la no fato de a irmã na
família não igualar seu irmão, em o filho emancipado ou a filha casada deixarem
completamente de dela fazer parte, e temo-la, enfim, nas numerosas disposições
importantes das leis gregas e romanas, como adiante buscaremos ocasião de
estudar.[17]
Dito de outro modo, o mestre
Coulanges quis mostrar o papel importante que é desempenhado pelos pensamentos
e ações religiosas na vida social. Aí se vê que o homem é um ente racional
também com relação a valores, principalmente.
Basicamente, se pode afirmar que
Coulanges, Robertson Smith e Durkheim tiveram um ponto em comum: acreditavam
que a religião surgira da “natureza mesma
da sociedade”. Smith chegou a afirmar que “os ritos estavam conectados com
os mitos; mas os mitos não explicam os ritos, e sim o oposto”. Ver a religião
como um fato social, como propunham esses autores, é vê-la independente das
mentes individuais, é reconhecer-lhes uma existência ou preexistência aos
indivíduos. Isto é, ao nascer os indivíduos já se deparam com uma religião
pronta com seus dogmas, seus rituais e sua cosmovisão. Ela se impõe aos
indivíduos, ela é parte importante da realidade social. A importância social da
religião parece ser ainda maior nas sociedades de pequena escala onde ela tem
um caráter geral e abrangente, um caráter, poder-se-ia dizer, mais compulsório
ainda do que várias religiões podem subsistir lado a lado.
Já se viu a forma como Durkheim
definiu a religião – instituição dotada de ritual e doutrina, onde se distingue
o sagrado do profano e onde existe a igreja como unidade social integradora e
integrante. Em suma, não foi o totemismo que despertou os sentimentos
religiosos do grupo, mas o grupo que despertou o sentimento religioso e
totêmico.
Marcel Mauss segue as pegadas de
Durkheim e vai além. Como adverte Pritchard, este autor, num ensaio em
colaboração com M. H. Beuchat, Essai sur les variations saisonnières dês
sociétés eskimos: Étude de morphologie sociale, procura demonstrar a tese
de Durkheim de que a “religião é um
produto da concentração social e se mantém às custas do gregarismo periódico”.
Prichard assim traduz o argumento geral do ensaio de Mauss:
Basta dizer que o autor
mostrou como os Esquimós, durante parte do ano – o verão – quando os mares
estão sem gelo, se dispersam em pequenos grupos familiares vivendo em tendas.
Quando o gelo se forma já não lhes é possível procurar caça, de modo que passam
esta parte do ano (o inverno) em grupos maiores e mais concentrados em
habitações comuns, várias famílias ocupando um mesmo cômodo, de sorte que
quando as pessoas se encontram numa fase de relações sociais mais amplas
(sendo, portanto, a ordem social então não apenas de diferentes proporções mas
também bastante diferente em arranjo e estrutura), a comunidade é não apenas um
grupo de famílias vivendo juntas por conveniências, mas uma nova forma de
agrupamento social em que os indivíduos se relacionam de modo diverso. Com este
padrão alterado, surge uma diferente escala de leis, de moral e costumes,
adaptada às novas circunstâncias e que cessa durante o período de dispersão. É
quando se formam os grupos amplos que as cerimônias religiosas anuais ocorrem;
assim, poder-se-ia dizer que os Esquimós confirmam a tese de Durkheim.[18]
Radcliffe-Brown procurou desdobrar a
teoria do totemismo de Durkheim. Na opinião de Pritchard, a generalização que
ele perpetra não foi satisfatória. No entanto, o que importa é dar relevo ao
fato de um autor mais recente ter adotado também uma teoria “sociológica” para explicar o fenômeno
religioso. Referindo-se à teoria do totemismo, diz Radcliffe-Brown:
Esta teoria engloba o que
penso ser a parte mais valiosa da análise de Durkheim, no reconhecimento de que
a função da religião ritual do grupo para com seu totem é exprimir e deste modo
manter viva a solidariedade do grupo. Dá, além disso, uma razão, que pode ser
demonstrada, penso, com base na própria natureza da organização em si, para a
escolha das espécies naturais como emblemas ou representantes de grupos sociais.[19]
4.3.3 A Mentalidade Primitiva de Lévy-Bruhl.
Passadas em revista as teorias
psicológicas e as sociológicas, nosso autor discute a teoria de Lévy-Bruhl
acerca da mentalidade primitiva. Esta teoria é muito estimulante por tratar a
religião de um ângulo diferente. Com relação às duas categorias de teorias
vistas, a de Lévy-Bruhl acha-se muito mais próxima das teorias sociológicas do
que das psicológicas. Ele acreditava, como Durkheim, que ao variarem as
estruturas sociais, variam igualmente as representações (consciência coletiva
de Durkheim) e em conseqüência também o pensamento individual.
Pode-se dizer que a teoria de
Lévy-Bruhl tem afinidades com as teorias de Karl Marx sobre a ideologia e a de
Vilfredo Pareto sobre as derivações. Trata-se, acima de tudo, de um estudo
epistemológico, onde ele analisa a lógica do pensamento humano através dos
tempos e na sua consistência interna. Não se pode negar que entre as teorias
psicológicas não se tenha tratado, em parte, também do assunto. Ocorre que,
neste caso, se procurou mostrar que o pensamento religioso era rudimentar
porque era religioso; era como se o tempo da religião já tivesse acabado. Não
se pense que a teoria da mentalidade primitiva deste autor seja irretocável.
Isto não. Contudo, ela é muito rica por levantar outros aspectos da questão.
Em resumo se pode dizer que este
autor via na religião primitiva, não uma forma errada de interpretação do
universo, mas uma forma adequada de interpretação que condizia com suas
representações coletivas. Este autor, quando se refere à mentalidade primitiva
e ao pensamento pré-lógico, não pretendeu negar a logicidade do pensamento dos
povos de pequena escala. Como diz Pritchard, nos extratos abaixo:
Lévy-Bruhl chama de ‘pré-lógicos’ os
modos de pensamento (pensamento mágico-religioso, pois ele não distinguia
pensamento mágico de pensamento religioso) que parecem tão verdadeiros para um
homem primitivo e tão absurdos para um europeu. Ele quer aludir, com esta
palavra, a algo muito diferente daquilo que os críticos imaginaram e lhe
atribuíram. Ele não quis dizer que os primitivos são incapazes de pensar
coerentemente, mas sim que, na maioria, as suas crenças são incompatíveis com
uma visão crítica e científica do universo (...).
São razoáveis (os primitivos), mas
raciocinam em categorias diferentes das nossas. São lógicos, mas os princípios
de sua lógica não são os nossos nem os da lógica aristotélica (..). Ele não
está falando de uma diferença biológica ou psicológica entre nós e os
primitivos, mas sim de diferença social.
Lévy-Bruhl tentou mostrar que todas
as sociedades possuem representações coletivas; os primitivos também as
possuem, só que as suas tendem a ser místicas e as nossas, críticas e
científicas. A teoria deste autor é, por vezes, tomada como fundo psicológico,
mas, como se viu, não é bem assim. Nota-se isto no trecho de Lévy-Bruhl,
abaixo:
Resta notar como os modos de
agir dos primitivos correspondem exatamente aos seus modos de pensar que foram
até agora analisados como, nas suas instituições, as suas representações
coletivas exprimem-se com o caráter místico e pré-lógico que neles foi
reconhecido. Deste modo penso obter um duplo resultado. De um lado a teoria
receberia uma verificação precisa; doutro lado, uma vez que a explicação
psicológica e simplesmente verossímil dada pelas instituições primitivas o mais
das vezes poderia facilitar a descoberta de uma melhor explicação. De fato esta
interpretação deverá levar em conta em primeiro lugar a mentalidade própria dos
grupos sociais considerados.[20]
Como se viu Lévy-Bruhl tenta
demonstrar que o pensamento pré-lógico desempenha um papel importantíssimo na
vida social dos primitivos. Cinco anos depois de publicado o seu livro sobre a
mentalidade primitiva (o que ocorreu em 1910), um autor italiano, Vilfredo
Pareto (1848-1923), edita o seu enorme Tratado di sociologia generale,
em que monta toda a sua concepção sociológica na idéia de que os homens são
movidos muito mais pelos sentimentos do que pela lógica experimental e fática.
Não obstante o caráter psicológico desta teoria paretiana, ela assume uma
importância ímpar para o estudo da religião, de vez que, diferentemente de
Lévy-Bruhl, ele acha que aquela “mentalidade
primitiva” (ele não cita este autor nem se refere ao termo) domina não
apenas os povos primitivos, mas também os povos hodiernos. Utilizando as
categorias weberianas, se poderia dizer que, para Pareto, as ações racionais
quanto a valores e ações tradicionais são mais freqüentes na vida social média
do que as ações racionais quanto a fins. Pareto ainda distingue a verdade da
utilidade. Para ele nem tudo que é certo é útil e bom para a sociedade.
O que Pareto denomina de ações e
teorias não-lógicas não quer dizer que sejam ilógicas ou desprovidas de
qualquer lógica. Por uma questão metodológica ele chama de não lógica todas as
ações e teorias que estão em desacordo com os fatos, com a experimentação ou
observação controlada.[21]
Este autor ainda separa a ação da teoria, achando que a ação antecede a teoria.
O homem age e depois explica. Aí está a
expressão de sua teoria das “derivações”
que não deixa de ser uma ampliação da teoria da “ideologia” de Marx. Enquanto este via os valores sociais como
expressão de interesses de classe, principalmente os interesses políticos,
Pareto estende à maioria das teorias ou explicações orais ou não o caráter de
derivações. Para ele derivação é uma espécie de verniz ou capa de lógica com
que procura, normalmente, encobrir a falta de lógica das ações subjetivas. Em
outras palavras, muitas teorias (na política, na religião, na própria economia,
enfim, em todos os setores sociais) não passam de simples justificativas, de
puras racionalizações para justificar os interesses e ações subjetivas. Se bem
que este autor atribua a uma fonte comum as ações e as teorias – ou seja, não
crer que umas derivem das outras, nem as ações das teorias, nem as teorias das
ações.
Segundo Pareto tanto as ações como
as teorias derivam, principalmente, de um certo estado psíquico do homem; de
sorte que as teorias não seriam uma espécie de tradução dos atos humanos nem
estas ações gerariam as teorias. Contudo, ele admite que a influência dos atos
sobre as teorias é maior do que aquela exercida pelas teorias nas ações
humanas.
Resta-nos observar que há muita
similitude entre o conceito de religião adotado por Lowie e por Pareto, na
medida em que ambos acham que esta é expressão, principalmente, de sentimentos.
Pareto, a exemplo de Lowie, como já foi visto, tem na conta de religião as
várias formas fantásticas de nacionalismo, de socialismo, de liberalismo, de
democracia, etc. Esta posição de Pareto está de acordo com a sua teoria das
derivações; estas assumem as mais diversas formas para justificar,
essencialmente, os mesmos sentimentos humanos. Os resíduos (expressões de
sentimentos) permanecem basicamente os mesmos, enquanto as derivações permitem
aos homens modificar as formas de expressão deles, numa denominada “lógica de sentimentos”.
4.4 Outros Tópicos no Estudo do Fenômeno Religioso.
Neste tópico pretende-se abordar,
embora de forma rápida, alguns assuntos habitualmente estudados nos manuais e
tratados de antropologia cultural quando enfocam o problema religioso. Esta
parte tem um caráter complementar, de vez que no item 3 se passou em revista
boa parte das teorias sobre a religião e se fez referência à boa parte dos
assuntos de que voltaremos a tratar. Ao contrário do item anterior, aqui se
buscará a brevidade.
4.4.1 Religião e Cosmovisão.
Quando se fala da religião como
cosmovisão, procura-se salientar um aspecto do religioso: o sistema de
conhecimentos. Na verdade, o homem sempre procurou desenvolver um sistema de
conhecimento globalizante que servisse para dar sentido à sua vida social. O
conhecimento religioso tem um objeto vastíssimo. Ao contrário da ciência, que
restringe seu campo de conhecimento e de estudos apenas ao mundo sensível, isto
é, suscetível de ser experimentado pelos sentidos, a religião existe para
explicar tudo, sem exceção. Ela é tida como autoridade em todos os domínios.
Tem explicação para o sentido da vida, para a origem de tudo.
É verdade que, normalmente, aquelas
religiões em que sua parte doutrinária é mais elaborada são consideradas
religiões superiores. Nas denominadas religiões inferiores a parte doutrinária
é, de certo modo, sobrepujada pelo vigor dos rituais, das festas e da “experiência do divino”. Este fato é tão
notório nas sociedades de pequena escala que, por isso, alguns autores chegam a
falar de povos sem religião. Evidentemente, trata-se de exagero.
A propósito de ritual e doutrina,
respectivamente, ação religiosa e teoria ou verbalização religiosa, há vários
estudos. Neste mesmo capítulo vimos a opinião de Pareto segundo a qual o rito
não nasce do mito nem vice-versa. Para Durkheim, por exemplo, o rito teria uma
função educativa, a tarefa de reviver as crenças e de perpetuá-las. Para Robertson
Smith, como se viu, os ritos é que explicam os mitos e não o inverso. Já os
primeiros antropólogos, como Tylor e Frazer, achavam que a doutrina era uma
interpretação errônea da realidade existencial do homem e assim por diante.
Uma coisa é verdade, a linguagem
utilizada pelos mitos, pela doutrina e pelas crenças é, em geral, hermética,
analógica e plena de simbolismo. Igualmente é ela cercada do maravilhoso, seja
acerca da forma como ela foi legada à posteridade seja no conteúdo das
narrativas. Talvez se possa dizer que tanto o rito como o mito apresentam-se
como linguagem na medida em que os ritos são realizados com a finalidade de
reavivar as crenças.
Em todos estes casos, é uma
função do ritual realçar a importância social de algo que é mantido como um
valor na sociedade que tem o ritual. Se o ritual é um tipo de linguagem, um
modo de dizer coisas, então a magia da canoa nas ilhas Trobriand acentua a
importância da construção de canoas para os trobriandeses; o ritual de pacto de
sangue enfatiza a necessidade de apoio mútuo entre as partes, e o ritual da
evitação sustenta a necessidade de boas relações entre grupos ligados por
afinidade.[22]
Ao que tudo indica, a linguagem
ritual é de mais fácil compreensão do que a linguagem doutrinária. Nas nossas
pesquisas sobre os cultos afro-brasileiros constatamos que filhos e
filhas-de-santos podem falar muito bem a linguagem ritual – participação
completa no ritual com, até a experiência do êxtase ou possessão – e se mostrar
pouco enfronhados na doutrina do candomblé ou xangô. Em outras palavras, é-lhes
mais fácil sentir a presença dos orixás do que explicar a natureza destes.
Ainda com respeito à relação entre
ritual e doutrina (mito), podem-se identificar determinados ritos que se
encontram intimamente ligados à doutrina e a ela se referem explicitamente;
outros, porém, aparentemente não se mostram tão ligados assim à doutrina e aos
mitos. Contudo, ao que parece, a religião deve ser vista como um sistema
integrado onde a separação entre ritos e mitos não passa de um expediente de
análise, como diz Mauss no texto abaixo:
Verdadeiramente, o porvir
está reservado a um método mais eclético. O deus, o rito, o nome e o mito, tudo
isso forma conglomerado cujos elementos unicamente podem ser dissociados
mediante a abstração; não existe anterioridade do nome sobre a idéia, nem do
rito sobre o mito. Este método, enquanto eclético, será também mais objetivo e
sociológico. Já que o nome, vinculado desta maneira ao rito, deixa de ser uma
simples expressão verbal, transforma-se em parte integrante de todo um sistema
de coisas do que é inseparável, e essas coisas são sociais.[23]
4.4.2 Ritos de Passagem e Outros Ritos.
Não se tem notícia de povo algum que
desconheça os rituais em sua vida cotidiana. Nenhum povo desconheceu até hoje
essas práticas simbólicas, ricas em coreografia e cheias de sentido místico e
sagrado. Normalmente tais práticas revestem-se de uma expressão estética
formidável. Neles são utilizadas fórmulas que são recitadas em tom solene e
dramático: muito freqüente também é o uso de cânticos fervorosos, bem como a
presença de danças dramáticas e expressivas. Ao lado dos grandes ritos em que a
comunidade toda é chamada a deles participar ativamente ou como espectadores,
existem pequenos rituais particulares também de uso coletivo. H. D. Munro
define o ritual desta forma:
Os antropólogos concordam geralmente em afirma que o
ritual é uma ação prescrita, repetitiva, pela qual a prescrição pode caminhar
desde a rigorosa definição da forma e da seqüência até a possibilidade de
escolher entre um número limitado de ações.[24]
O caráter repetitivo e de prescrição
assumido pelo ritual denota claramente sua condição social. Isto não impediu a
Van Gennep de toma-lo como expressão mágica (por tratar-se de prática) e crença
como expressão religiosa. Isso se entende, em parte, pelo fato de este autor
não estabelecer uma separação maior entre religião e magia. Como ele próprio
explica:
Estas teorias constituem a
religião, cuja técnica (cerimônias, ritos, culto) chamo magia. Como esta prática
e esta teoria são indissolúveis, pois a teoria sem a prática torna-se
metafísica, e a prática fundada sobre outra teoria torna-se ciência, empregarei
sempre o adjetivo ‘mágico-religioso’.[25]
De modo geral, os ritos de passagem
denotam a sensibilidade das pessoas com relação ao dinamismo da própria
existência humana. O peregrinar do homem através de sua existência envolve uma
gama enorme de situações, de transformação, de passagem, de metamorfose. No
plano biológico o indivíduo nasce, cresce, se reproduz, envelhece e morre. No
plano social acontece algo semelhante. A ocupação das várias posições sociais
implica em modificações substanciais na vida das pessoas. De resto, o dinamismo
e o movimento – a vida – atinge todo o cenário em que tem lugar a vida social
dos povos. Por isso adquire significado a própria transformação cíclica do
ambiente: o movimento da lua e do sol, a mudança das estações climáticas
(primavera, verão, outono e inverno), etc.
Como é sabido, a transformação, de
modo geral, traz consigo um momento crítico – um momento da passagem de um
estado a outro – um momento de crise, de angústia e de esperança, de temor e
confiança, de saudade e expectativa. Trata-se de um momento paradoxal em que os
sentimentos assumem um caráter contraditório e, por isso, torna-se doloroso
para quem dele participa. Como salientou Van Gennep, esta situação de transição
compreende três momentos específicos: a separação (saída do estado anterior), a
liminaridade ( o estado de passagem, propriamente, em que a pessoa se acha
entre o estado anterior e o posterior) e a agregação ( quando se dá a
introdução no novo estado). Cada momento desses pode comportar ritos
específicos denominados pelo autor citado como: ritos pré-liminares ou de
separação, ritos liminares ou ritos “executados durante o estágio de margem” e
os ritos pós-liminares ou “ritos de agregação ao novo mundo”.
O momento crucial da passagem é
precisamente o de liminaridade por se constituir naquela hora de indefinição e
de imponderabilidade. É a soleira, é a “marginalidade”, é um momento “mágico” e
normalmente com uma marca sagrada.
Sente-se que na vida as pessoas
passam por muitos momentos de liminaridade e que eles se prestam,
perfeitamente, para alimentar os elos sociais que vinculam as pessoas entre si.
Tanto é verdade que, normalmente, tais momentos críticos da vida das pessoas
assumem um caráter ritual onde toda a communitas (para usar a expressão
de TURNER) é convocada como testemunha e participante. A communitas, por
assim dizer, é que dá forças à entidade liminar que se encontra despojada, no
momento, de qualquer condição social e espera assumir uma nova condição. A communitas
não só testemunha a nova condição social do ser liminar, mas ela própria toma
ares de sacralidade porque dela é que emana a outorga da nova condição desejada
e “temida” pelo neófito. Tacitamente, é também a communitas que promete
ajudar o neófito na sua nova condição, não só reconhecendo-lhe o novo posto
como auxiliando-o no desempenho do mesmo.
A presença de ritos de agregação, de
liminaridade e de separação é grande tanto entre os primitivos como entre os
povos ditos civilizados. Entre nós numerosos são tais ritos. Como atos
sagrados, os ritos de passagem comportam a prática de tabus, a troca de bens, a
reciprocidade, a confraternização, a comensalidade e muitas outras práticas.
Tais ritos constituem numa modalidade de festa. O batizado, o casamento, o
nascimento dos filhos, o aniversário, as vitórias, as promoções de toda origem,
a investidura de cargos, etc. os ritos de passagem são como os sacramentos – os
sacramentos tais como o batismo, o matrimônio, a confirmação, a eucaristia,
etc., são ritos de passagem.
Efetivamente, pode-se objetar que
tomando-se os ritos de passagem num sentido mais amplo da palavra, o seu
caráter religioso pode parecer, em certos casos, bastante rarefeito. Como
sentir o significado religioso numa colação de grau, numa promoção ocupacional,
numa conquista de nova patente nas forças armadas e assim por diante? Já foi
visto que o conceito do sagrado e da religião apresenta-se, na prática, como
uma questão de agregação; os ritos são mais ou menos sagrados, mais ou menos
significativos. Ao que tudo indica a religião nas sociedades modernas está
longe de perder sua força e sua presença. Ela assume novas formas e utiliza-se
de novo quadro simbólico, mas continua presente. Poder-se-ia dizer que o
momento atual é pródigo em situações de crise. Há quem diga que vivemos tempos
de crise por excelência. Nisso há muita razão se considerarmos que as crises
decorrem, precisamente, da transformação. Ora, nunca na história o homem
experimentou tanta transformação em tão curto espaço de tempo. Nesse aspecto
pode-se dizer que os ritos de passagem são hoje em maior número. Mas não seria
esta freqüência maior de transformações um motivo para vulgarizar a
transformação e minimizar as crises, tornando a transformação um estado
permanente quase anulando a sensação de passagem? Não existe subliminarmente
uma busca generalizada de transformação por parte da sociedade moderna? É provável.
Contudo, admitir que os homens de hoje se sentem atraídos pela transformação
não significa necessariamente que eles não sintam temores e expectativas na
caminhada de suas vidas. Como se sabe, boa parte das posições (status)
na vida moderna é adquirida – as pessoas crêem que conquistaram o posto que
passam a assumir – ao contrário do que costuma acontecer nas sociedade de
pequena escala onde as posições são atribuídas, outorgadas segundo um
procedimento institucionalizado e bastante estável. Isto não quer dizer que, na
prática, a maioria das posições sociais de hoje não sejam, de uma forma ou de
outra, institucionalizadas e, portanto, endossadas pela sociedade. Todavia
pode-se admitir que a consciência coletiva já não é tão monolítica como era
entre os povos de pequena escala. Quase se poderia dizer que o coletivo está
cedendo o individualismo. Neste caso, talvez se pudesse dizer que as sociedades
de pequena escala são mais religiosas e as sociedades de larga escala mais
mágicas, aquelas mais coletivas e estas mais individualistas, aquelas teriam a
forma de communitas e estas a forma societas. Naturalmente, esta
colocação pode ser válida para os tipos de sociedades tomadas como unidades
globais. Contudo, ao que parece, nas
sociedades comunitárias e sagradas onde a vida religiosa se desenvolve com
intensidade e vigor. Exemplos disso são as paróquias, as “igrejas” evangélicas, os terreiros de xangô, os centros espíritas,
etc.
4.4.3
Totemismo.
O fenômeno do totemismo está
intimamente ligado à existência do clã. Durkheim vê no fenômeno uma forma
elementar da vida religiosa. Quando se tratou das teorias acerca da religião se
viu que este autor considera a religião como um fato social, coletivo e
aglutinador. Nela se distinguem, segundo ele, dois elementos formadores: de um
lado, as representações coletivas (parte doutrinária) e, doutro lado, os ritos
(parte cerimonial e prática). A palavra “totem”
é derivada de tribo algonkina, portanto de origem norte-americana. Tal palavra
foi incorporada à antropologia cultural para significar um fenômeno bastante
freqüente na vida religiosa dos povos de organização clãnica. Embora se possa
falar de totemismo individual e sexual, tem mais relevo aquele de cunho social
que caracteriza o clã todo.[26] O
totem impessoal e coletivo é considerado um emblema do clã. O totem pode ser de
espécie animal ou vegetal e raramente de natureza inorgânica. O totem não é
determinado animal ou uma planta isolada, mas a espécie em questão.[27]
Em virtude da crença dos membros do clã de que eles descendem de um ancestral
comum e que este é simbolizado por determinada espécie vegetal ou animal, esta
torna-se o totem do grupo, o que equivale a dizer que tal espécie assume a
condição sagrada que imprime respeito e certo temor a todo o clã. Disso deriva
toda uma série de tabus com relação ao totem. Ora é a proibição de o clã
alimentar-se da espécie totêmica, ora o consumo da mesma só é permitido em
determinadas ocasiões rituais e seguindo todo um cerimonial coberto de regras e
procedimentos formais. Cabe, com
freqüência, ao grupo ou clã zelar pela espécie totêmica. Se a tribo conta com
vários clãs, os tabus que atingem um determinado clã não obrigam os outros
clãs.
É conveniente observar que o totem
que dá o nome ao clã, também o identifica. Os índios Fulniô, por exemplo, ainda
hoje conservam sua organização clãnica e são constituídos de cinco clãs, a
saber: o clã do Fumo (Sedaytô), o clã do Pato (Faledaktoá), o clã do Porco
(Waledaktoá), o clã do Periquito (Lidyaktô) e o clã do Peixe (Txokôtkwá). Esta organização
social de índios que já se encontram em estreito contato com os brancos no
interior de Pernambuco (cidade de Águas Belas) tem ainda hoje um papel
relevante: este papel não se estende à própria organização social, mas também
ao regime alimentar e ao culto do ouricuri em que toda a tribo se isola durante
três meses (setembro a dezembro) para as práticas religiosas. Nesta ocasião a
divisão do culto obedece à organização social e totêmica.
Talvez se possa julgar inverossímil
que os povos totêmicos acreditem de fato na sua origem real e comum ligada a
uma espécie animal ou vegetal. É bem de notar, todavia, o lado mitológico da
vida de qualquer povo. Também nós de tradição cristã acalentamos crenças e
mitos por demais maravilhosos e inverossímeis. Mas, como diz a tradição, “a fé remove montanhas...”. A crença e a
tradição cobrem com o véu da fé as aparentes e visíveis demonstrações de falta
ou falha de lógica e de racionalidade. De certo modo se pode dizer que o mito e
a crença são tanto mais fortes e vivos quanto mais maravilhosos e inacessíveis
à compreensão das pessoas. A fé não deixa de pôr à prova os crentes.
Uma outra maneira de ver o totemismo
é do ponto de vista psicológico. Freud também estudou o fenômeno do totemismo e
procurou ver na festa totêmica uma celebração em que simbolicamente o grupo
rememorava o crime parricida relacionado ao complexo de Édipo. Assim comenta
Beattie a teoria freudiana do totemismo:
Como Durkheim, ele baseou
sua hipótese no material australiano. Supôs que a origem da instituição está no
complexo de Édipo, que considerou como universal. Na família primitiva, diz
ele, os filhos cobiçavam as mulheres de seus pais e, para adquiri-las, matavam
e comiam seu pai. Posteriormente, morriam de remorso e a festa totêmica (que, de
fato, pode ter ocorrido na Austrália mas não é encontrada em nenhum outro
lugar) é realmente um restabelecimento simbólico daquele primeiro crime
parricida. Freud não deixa claro em que ponto da história humana supõe que isto
ocorreu, ou se ocorreu uma única vez ou em muitas ocasiões. Sua teoria não é
levada a sério pelos antropólogos sociais, que, de qualquer modo, não estão
muito interessados nas origens indevassáveis das intituições humanas.[28]
Como bem salientou Beattie, acima, a
teoria freudiana neste particular tem pouca importância para a antropologia.
Contudo, ela tem o mérito de trazer à baila o problema da natureza e da cultura
ao tentar mostrar que o tabu do incesto existe não por ser contra a natureza,
mas por constituir-se num dado da natureza. Curiosamente ele foi buscar apoio
em Frazer que é citado por ele em seu livro. Considere-se o trecho abaixo
citado por Freud e retirado do Ramo de Ouro de autor inglês:
Não é fácil compreender por que um instinto humano
profundamente radicado deveria ter necessidade de ser reforçado pela lei. Não
existem leis que ordenem ao homem comer e beber ou que proíbam meter as mãos no
fogo. Os homens comem e bebem e têm as mãos longe do fogo por instinto, por
medo das penas naturais, e não legais...
Podemos portanto admitir tranqüilamente que os crimes
proibidos pela lei são sempre crimes que muitos homens cometeriam sob o impulso
da própria propensão natural. Se não existisse esta propensão não existiriam
tais crimes, e se não se cometessem tais crimes, qual o objetivo de proibi-los?
Por isso, ao invés de deduzir, por causa da proibição legal do incesto, que
existe uma aversão natural que leva ao incesto, devemos concluir antes que é um
instinto natural que leva ao incesto, e que, se a lei o reprime assim como reprime
outros instintos naturais, o faz porque os cidadãos concordaram que a
satisfação destes instintos é danosa aos interesses da sociedade.[29]
Aí a razão por que se incluiu aqui o
pensamento de Freud a respeito do assunto: a argumentação utilizada não é estranha
dentro da antropologia. Não só isso, esta argumentação merece a atenção por não
ser fácil descarta-la. Fica portanto o registro. Quanto à explicação social do
totemismo adotada por Durkheim e por autores, desponta nela a idéia de religião
como controle social, uma espécie de procedimento que visa a autodefesa do
grupo – uma forma de conservação e perpetuação do sistema social.
4.4.4 Xamanismo, Êxtase e Possessão.
Já foi visto que as explicações e as
teorias a respeito do fenômeno religioso tanto são de caráter psicológico como
de cunho sociológico. Aquelas explicações psicológicas, por sua vez, são
intelectualistas ou emocionalistas. O tópico em questão – o xamanismo – quando
analisado, apresenta-se marcado principalmente por seu caráter emocionalista.
Isto não quer dizer que esta marca não derive da consciência coletiva da
comunidade considerada. Da mesma forma como existem religiões em que a parte
doutrinária assume a hegemonia, assim também há outras em que a parte do ritual
torna-se preponderante e chega quase a ofuscar a parte reservada à doutrina. É
o que acontece com o fenômeno religioso conhecido pelo nome de xamanismo: neste
a parte doutrinária é tão diminuta que parece inexistir.
O Xamanismo caracteriza-se,
principalmente, pelo vigor e dramaticamente dos rituais. Os participantes
destes entregam-se de corpo e alma à função ritual onde buscam um contato
direto com a divindade e com os espíritos. Todos buscam ser possuídos, ao menos
por instantes, pelos espíritos. Este último fenômeno é conhecido por vários
termos: transe, possessão, êxtase, visão ou fenômeno mediúnico. Este fenômeno é
universal, embora com variações de região a região e de religião a religião. No
catolicismo, por exemplo, a tradição fala de visões e de experiências intensas
de transes por parte dos santos e de pessoas piedosas. Nos cultos
afro-brasileiros o fenômeno é ainda mais freqüente. Em todos os toques
realizados nos terreiros de xangô ocorre o fenômeno da possessão ou do transe.
Nestas ocasiões, de acordo com o ponto executado (cada ponto é dedicado a um
orixá), os filhos-de-santo vão entrando em transe. Aí eles passam a dançar com
mais entusiasmo, suas fisionomias se transformam, passam a suar com abundância,
fazem trejeitos, soltam gritos, gesticulam com vigor e parecem ficar fora de si
– é o “santo que baixa”. Nota-se que
a possessão, embora possa ser vista como uma experiência individual e íntima,
apresenta um padrão coletivo. Todos os filhos de Ogum, por exemplo, dançam do
mesmo modo e cumprem um coreografia padronizada – ao dançarem parece que
empunham uma espada e assumem uma postura guerreira, mesmo quando não empunham
de fato uma espada ou um simulacro. A respeito do fenômeno escreveu Bernardi:
A palavra ‘êxtase’, na sua
derivação etimológica do grego ex-stasis,
sugere a idéia do estar fora de si. No possesso dá-se como que uma dissociação
da personalidade. O fenômeno é acompanhado de muitas outras manifestações, mais
ou menos marginais, tremores, suores, baba, grunhidos, glossolalia, injunções,
predições, mudança de identidade pessoal, força hercúlea, debilidade, etc.
Os objetivos do êxtase são,
em geral, os do culto, isto é, o contato com a divindade e os espíritos. As
motivações são determinadas por preocupações sociais. As aspirações individuais
ficam à margem, como secundárias. Entre as sociais prevalece a cura de doenças;
o êxtase e a possessão são os meios para transmitir o remédio curativo.
Procuram-se também desejos de libertação e de alívio; libertação da angústia do
viver quotidiano, recreação e satisfação psicológica. No momento culminante do
êxtase e da possessão, dar-se-á uma fortíssima tensão da pessoa toda, que não
tem longa duração (desde poucos minutos a algumas horas). Segue-se o colapso, a
distensão e o despertar, que sendo também momentos de possessão e cansaço
provocam serenidade e paz, não só no sujeito mas também nos assistentes que
participam na sessão.[30]
Como já foi dito, o xamanismo assume
várias formas. Mesmo onde quase a totalidade dos participantes pode entrar em
transe, há um deles que é reconhecido como o ministro do culto, o sacerdote, o
xamã. O termo xamanismo deriva da
primeira descrição do fenômeno observado no norte da Ásia. O xamanismo
implica no conhecimento e uso de várias técnicas que facilitam a entrada em
transe. O fenômeno foi encontrado entre os índios norte-americanos, entre os
índios da América Latina, na África e em muitos outros lugares. Pelas
observações feitas em terreiros de xangô, por exemplo, observa-se que o “pai-de-santo”, embora podendo entrar em
transe, é o único que parece ser senhor da situação, tem uma atitude ativa no
transe; ao passo que as demais pessoas entregam-se descontroladamente ao
fenômeno, de forma passiva. O mesmo fenômeno de poder do xamã sobre os
espíritos é observado por Charles Wagley no xamanismo Tapirapé.
Com respeito ao xamã nota-se uma
coisa muito interessante, trata-se de como determinadas pessoas se tornam
xamãs. Melhor dizendo, quase todos os xamãs passam por um determinado rito de
iniciação para transformar-se em xamã. Franz Boas estudou o fenômeno de modo
intensivo entre os Kwakiutl e observou certa constância no processo de
transformação pelo qual passaram todos os xamãs estudados. Em geral, na
comunidade existem vários jovens tidos como possuidores de virtudes
xamanísticas. Eles passam provas que evidenciem suas capacidades e habilidades.
Devem demonstrar a coragem de enfrentar os espíritos da floresta e também
demonstrar que tem poder sobre eles. Além disso, é necessário, para que sejam
reconhecidos como xamãs de fato, passarem pela prova final, que consiste num
período de enfermidade – em geral deliberada -
durante o qual sofrem crises e acessos. No meio da noite, quando os
espíritos estão à solta, são acometidos de crises e soltam gritos lancinantes.
A comunidade que está recolhida diz que o noviço está se tornando xamã. Vão a
ele e dão prosseguimento ao ritual. Vestem-no com roupas e colocam numa casa
especialmente construída para ele. Em suma, apesar das variações possíveis, uma
coisa é comum: acreditam que, se o noviço não conseguir tornar-se xamã, ele
virá a morrer.[31]
Ainda com relação à pessoa do xamã,
em geral os xamãs são homens, embora possa ocorrer que algumas mulheres também
ocupem esta posição.
Charles Wagley, no estudo que
empreendeu sobre o xamanismo, observou que o xamã pajé entre os índios
Tapirapé, na década de 1940, que habitavam o Brasil central a oeste do rio
Araguaia, tinha uma série de obrigações. Entre outras enumera as seguintes:
a) Tratar dos doentes da aldeia. O fumo é utilizado invariavelmente nos
rituais de cura. A defumação, tão utilizada hoje nas sessões de Umbanda, ali é
praticada com todos os requintes e em todos os acontecimentos xamanísticos. À
defumação segue-se o ritual assim descrito pelo autor:
O pajé sopra fumaça por todo o corpo do paciente, depois
nas próprias mãos, cospe nelas e começa, vagarosa e firmemente, a fazer
massagens no enfermo, sempre em direção às extremidades do corpo. Demonstra
estar removendo uma substância estranha por um movimento rápido das mãos,
quando atinge a extremidade de um braço ou de uma perna.[32]
É notável observar-se que esta descrição aplica-se quase perfeitamente a
uma sessão de Umbanda quando o mestre do culto está a dar os passes. É de notar
também que o rito acima descrito denota um procedimento mágico.
b) Cabe também aos pajés proteger os Tapirapé contra os espíritos. Entre
esses índios o medo dos espíritos das florestas (os Anhangás) ou dos mortos é
muito forte e pode causar desmaios e cenas de incontrolável pavor.
c) Uma obrigação muito importante do pajé dá-se por ocasião da gravidez.
Embora esses índios saibam que a gravidez está relacionada com a relação
sexual, esta não é condição suficiente para que ela ocorra, “acreditam que a concepção só é possível
quando um pajé ‘traz uma criança para uma mulher’”. Essa gente acredita que
várias espécies de aves e peixes, bem como o trovão, possuem ou dominam os
“espíritos das crianças” cabendo ao pajé consegui-los.
d) A segurança é também tarefa dos pajés. É ele que deve proteger as
pessoas contra os ataques dos animais ferozes. A ele cabe dominar as serpentes
e os jacarés.
e) Outra obrigação do pajé ou dos pajés é a do suprimento de alimentos. A
ele cabe atrair as varas de porcos-do-mato e outros animais que servem de
alimento para os índios Tapirapé. Os pajés também encarregam-se de provar e
aprovar os alimentos para o consumo da aldeia. As primícias passam, assim,
sempre pelas mãos dos pajés.
Tudo isso faz com que a posição social desfrutada pelos pajés nas aldeias
Tapirapé – pode-se dizer o mesmo para a maioria das tribos Tupi – seja muito
importante. Aos pajés é atribuído todo bem e todo mal. Daí perceber-se que a
existência dos pajés ou xamãs é perigosa e sujeita à ameaça de morte contínua.
Neste caso ele é visto como um feiticeiro que pode fazer também o mal.
Como se vê, não obstante os perigos pelos quais os pajés passam, também é
verdade que o xamanismo é o canal mais importante dentro da cultura Tapirapé de
atribuição de prestígio. Daí se poder dizer que o poder dos pajés não é apenas
religioso-mágico, mas também político. É verdade que em face da existência de
mais de um pajé tido como mais poderoso e acreditado e os outros menos
poderosos. Ao que parece, existe uma convergência na atribuição de prestígio ao
xamã. Ao lado das qualidades pessoais, há o fator idade: quanto mais experiência
e vida têm o pajé, mais acreditado ele se torna, e maiores os riscos de vida
ele corre.
V O
Etnema Religioso-Mágico – Segundo
Bernardo Bernardi.
Se na pesquisa antropológica se deve sempre evitar a inclinação
etnocêntrica que tende a fazer da própria cultura a medida e a pedra de toque,
tal norma torna-se ainda mais premente
quando se trata de investigar a religião e a magia como etnema. Não há
dúvida de que discussões sobre monoteísmo e politeísmo que animaram os
primeiros estudiosos das religiões “primitivas”
se revelaram bastante estéreis para a compreensão das próprias culturas “primitivas”, e não porque não fosse
legítimo formular uma catalogação das religiões na base da crença em uma ou
mais divindades supremas, mas porque se baseava numa problemática intimamente
conexa com a história cristã e humanista do Ocidente, alheia a essas culturas.
Não foi sem razão, por exemplo, que aos estudiosos ocidentais se censurou o
terem feito da análise das religiões africanas um assunto de polemica e de
interesses internos da sua cultura, assim como o avalia-la na perspectiva
peculiar das culturas africanas.
O estudo antropológico aborda a
religião e a magia sem preconceitos. Para o antropólogo, todas as religiões são
verdadeiras e todas as formas de magia são dignas de atenção, porque exprimem
uma necessidade humana e constituem parte essencial da cultura.
A procura duma explicação da
presença do homem sobre a Terra, do significado da vida, do bem e do mal, do
sofrimento e da dor, da morte e do pós-morte, não dá tréguas, e o esforço de
interpretação nunca atinge o fim. Mas a partir desta procura definem-se os
valores conceituais de base e determinam-se as normas racionais do
comportamento, numa visão e numa prática de vida que relaciona o homem com toda
a natureza.
Trata-se de uma atividade tipicamente racional. Toda a forma de
religião e de magia propõe um sistema de pensamento (ou doutrina). Esta
atividade participante levou bem depressa os antropólogos a refutar os preconceitos
e as escalas evolutivas construídas pelos seus próprios mestres e a descobrir o
filósofo, mesmo no homem “primitivo”.
O etnema (resultado dos antropemas –
expressões capilares da cultura, originadas pela intuição inventiva dum
indivíduo, e que, portanto, se especificam como raízes da estrutura cultural e
social) religioso-mágico não se limita apenas ao nível intuitivo e
interpretativo. Estrutura-se num conjunto de atos e de manifestações culturais,
religiosas e mágicas que tem por fim colocar o homem numa relação precisa com o
universo, corrigir todos os desvios e manter eficiente a ordem estabelecida. E,
visto que o homem se encontra imerso totalmente na realidade cósmica, não há
manifestação cultural que não reflita, de maneira específica, a preocupação de
estabelecer o homem numa relação cósmica precisa. Por outras palavras: não há
aspecto da cultura, não há etnema, que não seja, também de qualquer modo,
religioso.
Os aspectos misteriosos do cosmos,
exatamente porque são misteriosos e incognoscíveis, suscitam reações
contrastantes nos homens individuais. Há pessoas que se sentem estimuladas à
procura e à contemplação; outras que, embora sensíveis ao mistério, não ficam,
senão espordicamente, a pensar nele; outras, por fim, que permanecem indiferentes
e quase cépticas perante a sua realidade e, em particular, perante as
explicações ensaiadas pelos outros homens. Quando, por exemplo, se diz que os “primitivos” são profundamente
religiosos, se se quer dizer que a religião, como interpretação e norma de
relação com o mistério do cosmos, forma uma unidade com toda a cultura “primitiva”, exprime-se quase uma
tautologia; se em vez disso se quer dizer que todos os “primitivos” são
religiosos, afirma-se uma inexatidão. Também entre os “primitivos”, como entre todos os homens, há indiferentes e
cépticos.
Na pesquisa é necessário ter
presente estas diferenciações, seja para a escolha dos interlocutores seja para
a avaliação do seu testemunho. Assim, deve acrescentar-se que a diferenciação
pode distinguir todo o conjunto de culturas particulares, como se salienta a
partir da diversidade das especulações e das expressões mitológicas e rituais.
O aspecto misterioso do cosmos é o
objeto em volta do qual se desenvolve a atividade religiosa e mágica do homem. A
unicidade do objeto explica como é difícil traçar uma linha nítida de diferença
entre uma e outra atividade. A própria compreensividade unitária do conceito de
força vital, para o qual convergem as interpretações do mistério do cosmos,
oferece um outro motivo de explicação da íntima ligação entre religião e magia.
A dificuldade de distinguir com
exatidão os dois conceitos foi complicada pelas perspectivas inexatas com que
se colocou o problema, sobretudo em relação às religiões primitivas. Desde o
fim do século XIX até cerca de metade do século XX, também este problema foi
dominado pela busca das origens históricas. A disputa entre os evolucionistas
clássicos e os histórico-culturais dizia respeito à anterioridade histórica da
magia; por um lado, fazia-se corresponder a religião a um estado racional mais
perfeito e, portanto, posterior ao estado mágico; por outro, via-se a magia
como uma forma de decadência e, daí, posterior à religião. Também esta disputa,
como todas as pesquisas sobre as origens “históricas” da cultura, se revelou
completamente estéril “historicamente”.
Outras teorias “originárias”
mostraram-se, igualmente, subjetivas. Por exemplo, segundo Frazer, a magia e a
religião seriam estados anteriores à ciência, e assinalam a passagem evolutiva do
conhecimento humano da irracionalidade para a racionalidade. Durkheim, por sua
vez, distingue a religião e a magia em termos de sagrado e profano, social e
pessoal. A religião tenderia a constituir-se em igreja, desenvolve um estrutura
associativa e persegue objetivos sociais. A força coerciva da sociedade-igreja
estabelece a norma, isto é, põe limites que o homem não pode ultrapassar: a
coerção, a proibição, isto é, o tabu, assinalam o limite do sagrado. A magia,
pelo contrário, serviria somente para fins individuais, de interesse
particular; não impõe limites, antes procura ultrapassa-los, quando existem,
por meio de fórmulas e encantamentos; é o terreno do profano. Nas estruturas
totêmicas dos Australianos, Durkheim vê a demonstração etnográfica das suas
teorias e indicou que o totem é o símbolo mais exato da sua idéia de sociedade.
A distinção de Durkheim parece muito
arbitrária e o seu conceito de totem não corresponde à realidade etnográfica
australiana. De fato, o totem dos australianos é multiforme; há totens
coletivos, próprios de grupos de parentesco, mas também há totens individuais,
ligados às simples pessoas.
A cultura humanística e cristã
contribui para radicar e difundir o estereótipo da distinção entre religião e
magia, oposição entre o racional e irracional, relação com agentes pessoais e
com forças impessoais. O próprio De Martino se conforma com esta concepção e
contrapõe constantemente a magia à civilização como a irracionalidade à
racionalidade, a não história à história. Nas pesquisas sobre o Sul da Itália
interpreta a magia como “sobrevivência” de antigos estados irracionais. (DE
MARTINO, 1966. p. 8 e 137).
Uma distinção assim não pode
considerar-se universalmente válida, se tiverem presentes às concepções sobre a
religião e a magia, que a antropologia se encontra no dever de analisar. O
etnema religioso-mágico exprime a interpretação humana do cosmos, na sua
totalidade misteriosa e inatingível, composto por um conjunto de forças vitais
e de morte, contra o qual o homem deve defender constantemente a sua existência
e determinar as próprias relações. O mistério do cosmos continua oculto, quer
perante os esforços “racionais” da religião quer perante as ligações
“irracionais” da magia. A este nível fundamental de interpretação e de pesquisa
deve admitir-se que não existe qualquer diferença entre religião e magia; ambas
constituem um etnema único. Estas conclusões são confirmadas pelos estudos
comparativos mais recentes.
“A
distinção entre magia e religião”, escreve D. Hammond, “expressa como dicotomia e polaridade, não
pode defender-se. A magia não é uma entidade distinta da religião, mas uma
forma de comportamento ritual e, portanto, um elemento da religião” (HAMMOND,
1970. p.1355). E um outro estudioso, H. Philsooph, conclui deste modo uma
pesquisa sua:
... nem podemos dizer, como se tendeu a afirmar
especialmente nos últimos decênios, que as crenças primitivas mágico-religiosas
têm dois pólos, pessoal e impessoal. Em primeiro lugar, o poder sobrenatural
não entra em oposição com os atuantes, mas pertence-lhes, emana deles e, assim,
é-lhes essencial. Os agentes podem existir ou, pelo menos, crê-se que existem,
só que são fenômenos físicos, sociais, psicológicos, e assim por diante, que
podem interpretar-se como manifestações do seu poder. Em segundo lugar, uma vez
que o poder sobrenatural pertence aos agentes pessoais, não é exato chamá-lo
impessoal. Assim, a concepção, seja da religião primitiva seja daquilo que, bem
ou mal, é considerado magia primitiva, é uma concepção só e verdadeiramente
personalista. (Philsooph, 1971, p.201.)
É lógico observar que o termo
“personalista” e a palavra “pessoa” correspondem a conceitos culturais
tipicamente ocidentais e clássicos. São, portanto, entendidos, não em sentido
etnocêntrico, mas como termos de referência para compreender e analisar os
sistemas de pensamento das culturas “alienígenas”, estranhas à tradição
clássica-ocidental.
Em todas as culturas, simples ou
complexas, o enigma da vida e da morte permanece como documento persistente da
condição humana perante o mistério. Por esta razão, a religião e a magia não
cessam de adequar os termos das suas interpretações e das suas estruturas aos
conhecimentos novos adquiridos pela mente humana. Isto acontece tanto no âmbito
das religiões estabelecidas como nos movimentos espontâneos de reforma; tanto
nas práticas tradicionais da magia como nas novas expressões mágicas da
atualidade. A intenção é sempre idêntica: atenuar a angústia do homem perante o
oculto, que é precisamente o mistério da vida e da morte. Assim se explicam o
renovado interesse religioso dos nossos tempos e a proliferação de novas
magias, não obstante o extraordinário e estupendo progresso das ciências que
levou à conquista do espaço e dos planetas.
5.1 O Etnema religioso-mágico e o ambiente.
A
ação eficaz do oikos na formação da cultura manifesta-se nitidamente também em
relação à atividade religiosa e mágica. Antes de tudo, presta-se à
simbolização, sugerindo os termos de confronto e as analogias que entram na
linguagem religioso-mágica. Não é possível penetrar a fundo o significado dos
conceitos e dos termos religiosos e mágicos duma cultura sem ter em conta o
ambiente natural dentro do qual cada determinada cultura se desenvolve. Não só
as expressões conceituais e teóricas estão estritamente ligadas ao oikos, mas
também as manifestações rituais. E é simplesmente lógico que assim aconteça. De
fato, o objetivo primário e imediato da religião e da magia é aliviar o peso
existencial da condição humana, o que seria completamente ilusório e ineficaz
se a atividade religiosa e mágica se não
movessem de acordo com a situração ambiental dentro da qual toma consistência a
condição humana.
Existe, portanto, uma relação
estreitíssima entre religião, magia e oikos. A análise antropológica moderna
começou a encarar as manifestações religiosas e mágicas também nesta
perspectiva. Viu-se, assim, que contribuem para manter o equilíbrio interno dum
ecossistema no mesmo momento em que são condicionadas por este. A busca da
direção de caça ou pesca, ligada à linha do rio adivinhatório – tanto entre os
Pigmeus como entre os Esquimós - , serve para estabelecer uma espécie de
rotação entre os lugares de caça e de pesca e permitir um recrudescimento da
vida animal, de outro modo ameaçada na sua própria existência. Rappaport,
analisando a relação entre o ciclo ritual dos Tsembaga da Nova Guiné e as suas
condições ecológicas, chega à conclusão de que “não seria impróprio considerar
os Tsembaga e as outras entidades com as quais compartilham o seu território como
um ‘ecossistema ritualmente regulado’, e considerar os próprios Tsembaga e os
seus vizinhos como uma ‘população ritualmente regulada’. No desenvolvimento do
ciclo, o conjunto dos ritos ajuda a manter intacto um ambiente, limita o
recurso à violência da guerra de maneira a não pôr em perigo a existência
regional da população, reproporciona a relação entre homem e território, serve
para equilibrar entre os vários distritos o excessivo número de doentes e, com
os sacrifícios de suínos, assegura às gentes uma alta qualidade de proteínas no
momento em que tem delas maior necessidade” (RAPPAPORT, 1967. p.28-29).
O caso mais típico de relações entre
o etnema religioso-mágico e o ambiente tem-se talvez no respeito dos hindus
pela vaca. Este animal nutre-se de alimentos em que o homem não toca, e por
isso deixam-no vaguear; com as suas fezes proporciona argamassa e combustível
que, na situação ambiental da Índia, seria difícil obter industrialmente; serve
para os trabalhos agrícolas duma maneira essencial; uma vez que a agricultura
continua na base da atividade econômica e cultural da Índia, o caráter sagrado
do animal transmitir-se-á de geração em geração.
Muito semelhante é o comportamento
dos povos pastores africanos, os Masai, por exemplo, e os Nuer, que também, sem
chegarem ao extremo da atitude hindu, rarissimamente permite a morte de um
bovino.
Também as manifestações de culto, a
oração, o sacrifício e a adivinhação estão estreitamente condicionadas pela
situação ecológica.
A reação íntima entre os ecossistemas
e o etnema religioso-mágico deve, portanto, considerar-se importante e
fundamental. Entre outras coisas, como oferece motivo de simbolização
interpretativa e de estrutura prática, presta-se, pela tipologia, à distinção
das várias formas de atividade religiosa e mágica. Vamos nos ater a esta
relação para indicar uma tipologia do etnema religioso-mágico que respeite a
validade cultural de toda a sua expressão. Assim, conformando-se às antigas
denominações, distinguiremos três tipos: teísmo silvestre, agrícola e pastoril.
Nesta denominação põe-se em relevo o tema central da busca de deus, mas não a
idéia de deus como tal, e a diferença de que tal busca se reveste em relação
com os correspondentes ecossistemas.
Contudo, primeiro é necessário fazer
algumas observações sobre o conceito antropológico de deus. Antes de mais,
deve-se recordar que o vocábulo e o conceito derivam da raiz indo-européia div,
que significa “luzente”. O brilho descreve uma qualidade do Sol e serve como
símbolo para indicar o ser supremo que possui a plenitude da força vital. Desta
raiz e deste conceito derivam os vários apelativos indo-europeus para
“deus-Pai”: do sânscrito dyauspiter, do grego zeuspater, do latim júpiter, etc.
Há aqui um traço cultural comum que ficou da tradição histórica, mas que
igualmente respeita aos conceitos fundamentais de um deus do céu, simbolizado
pelo Sol luzente, e que, pela característica eminente de pai, trata da analogia
da estrutura da família patrilinear. Referindo-se a este significado
etimológico, o grande sanscritista Max Muller chamou-lhe a maior descoberta do
século XX. Assim, é possível dar-se conta da relatividade etnémica do termo
deus e dispor-se a compreender, com a maior amplitude, o esforço religioso e
mágico das culturas estranhas à tradição indo-européia. Na realidade, o
simbolismo do mistério cósmico com referência a uma força suprema, que n caso
indo-europeu é o Sol, da qual emana a vida e que por isso é comparável à figura
do pai, encontra-se em quase todas as religiões de maneira mais ou menos
acentuada. Por este motivo, parece-nos ser objetivo dar ao termo “teísmo” um
significado lato de busca religioso-mágica e de especificar o caráter do
aspecto ecológico.
5.2. O teísmo silvestre
A
selva, entendida como estepe ou floresta, caracteriza de forma compreensiva a
cultura dos povos recoletores e caçadores. O seu trabalho não tende a modificar
as condições ambientais para as tornar mais fecundas, mas simplesmente a
explorá-la para extrair a alimentação e o sustento. A selva condiciona toda a
vida destas gentes, mesmo nas expressões simbólicas.
Pertencem a estas culturas todos os
grupos de Pigmeus africanos (Gabão, Camarões e Zaire) e asiáticos (Malásia,
Filipinas, Nova Guiné). Os Pigmeus do Zaire que habitam s florestas do Ituri
são os mais bem conhecidos, chamados igualmente pelo nome tribal bantú Bantuti
e também, simplesmente, por Mbutis. As pesquisas de Schebesta e de Turnbull
confirmaram a autonomia da cultura dos Pigmeus e o extremo interesse dos seus
etnemas.
A floresta está no centro das
concepções e das práticas religiosas e mágicas dos Pigmeus do Ituri. Eis o que
escreve Turnbull, reproduzindo as palavras dum interlocutor seu, de nome Moke,
por ocasião do molimo, um rito da floresta:
‘A floresta é para nós pai e mãe’, disse ele, ‘e, como
um pai ou uma mãe, dá-nos todas as coisas de que temos necessidade – comida,
vestuário, proteção, calor e afeto. Normalmente tudo corre bem porque a
floresta é boa para os seus filhos, mas, quando as coisas correm mal, deve
haver uma razão.’ Estava curioso por ouvir aquilo que ele teria dito sobre este
assunto, porque sabia que as gentes das aldeias, nos momentos de crise, crêem
ter incorrido na maldição de qualquer espírito ruim ou dum feiticeiro ou dum
bruxo. Mas, os Pigmeus, não; a sua
lógica é simples e a sua fé mais forte, porque o seu mundo é mais bondoso.
Moke demonstrou-mo quando disse que,
normalmente, tudo corre bem no nosso mundo. Mas, de noite, enquanto dormimos,
pode acontecer que qualquer coisa vá mal. As formigas guerreiras invadem o
campo, vêm os leopardos e levam um cão ou uma criança. Se estivéssemos
acordados, estas coisas não seriam admissíveis. Assim, quando qualquer coisa
corre mal, há doença, falta a caça ou vem a morte, deve ser porque a floresta
dorme e não cuida dos seus filhos. Sendo assim, que fazer? Despertá-la.
Despertamo-la cantando para ela, e fazemo-lo porque queremos que se torne
calma. Então, de novo, tudo correrá bem. Assim, quando o nosso mundo vai bem,
também então cantamos para a floresta, porque queremos que ela participe da
nossa felicidade.
Turnbull
comenta que a expressão máxima das crenças dos Pigmeus na bondade da floresta é
oferecida pelo grande molimo, cantado por ocasião da morte dum deles. Nos
cantos não exprimem qualquer pedido; é suficiente despertar a floresta, e tudo
se torna normal. Mas se a floresta não acorda, se a morte intervém, que se faz?
Então, os homens sentam-se em volta do fogo da noite,
como eu também fiz na sua companhia, nos meses passados, e cantam cânticos de
devoção, cânticos de louvor, para despertar a floresta e acalma-la, para a
tornar, de novo, feliz. Quanto à desgraça acontecida, aludem a ela assim: à
nossa volta, tudo é obscuridade; mas se a obscuridade é da floresta, então deve
ser boa. (Turnbull, 1961: 92-93; cf. também 158-159).
Os Mbuti sustentam que no homem
também há um poder espiritual (espiritual no sentido de que se não conhece a
natureza). Têm grande interesse sobre a sua natureza e indicam-no,
indiferentemente, com cinco termos: pepo, kéti, boru, roho, satani. Estas
palavras derivam todas da língua bantú (Lese, Bira, Ndaka, Ngwana).
No que respeita à divindade,
Turnbull escreve que, para os Mbuti, não tem sentido querer descrever o que se
não viu nunca.
Todavia, olhando para os vários aspectos da vida
mbuti, podemos discernir uma crença num ser espiritual cuja natureza é,
genericamente, a da floresta... A floresta é a divindade (ndura nde Kalisia, ou
ndura nde mungu), não a sua habitação; daí a santidade da floresta e a profundidade
de tudo o que é floresta (p.252).
A floresta é considerada boa,
conseqüentemente afetuosa com os seus filhos. O som é o melhor modo para a
manter acordada e tranqüila. O som torna-se
comunhão com a floresta, especialmente nas celebrações noturnas do pequeno
molimo, por ocasião de preocupações menores quanto à saúde e à caça, e do
grande molimo, em ocasiões graves, sobretudo de morte.
Uma outra população africana que
apresenta um interesse cultural excepcional é a dos Bosquímanes da África do
Sul. Há diversos grupos, todos de proporções reduzidas, e vivem mesmo na selva.
Referimo-nos aos !Kung do Kalahari, estudados por Laura Marshall em 1962.
Os !Kung não acreditam que os animais tenham
espíritos ou almas e que os objetos da Terra (como as árvores ou água, por
exemplo) sejam penetrados por espíritos ou animados de espíritos próprios que
já possuem (p.222).
Contrariamente a quanto tinha sido
escrito sobre os Bosquímanes do Cabo, os !Kung não consideram seres divinos o
Sol, a Lua e as estrelas. Não personificam a chuva nem lhe prestam culto.
Por outro lado, o conceito de deus
do !Kung é bastante complexo. Sustentam que há “dois deuses, um maior, outro menor, que têm mulher e filhos, e que os
espíritos dos mortos ficam adstritos ao seu serviço”.
Todos estes seres vivem no céu. O
deus grande vive no Oriente, no lugar onde surge o Sol; o deus menor, no
Ocidente, onde o Sol se põe.
O deus maior é criador; criou-se a
si mesmo e, depois, ao deus menor. Criou, também, duas mulheres, uma para si e
outra para o deus menor. A mulher mais idosa vive, habitualmente, com o deus
maior, no Oriente; a mais jovem, no Ocidente, com o deus menor; mas, em
qualquer momento, o deus maior pode levar as duas mulheres consigo para o
Oriente. As mulheres geraram seis filhos aos deuses, três machos e três fêmeas.
Por fim, criou a Terra, os homens, as mulheres e todas as coisas.
O deus maior deu também um nome a si
mesmo, ao deus menor, às suas mulheres e aos filhos. O seu nome deu-o em louvor
próprio. Disse: “Eu sou Hishe. Não sou
conhecido; sou estranho. Ninguém pode mandar em mim.” Louvou-se também a si
mesmo, com o nome !Gara, quando fez algo contra os homens; e as gentes
disseram: “Causa a morte entre o povo e
faz trovejar a chuva.” Dar a si mesmo um nome ruim era como reconhecer-se a
causa da doença e da morte.
São sete os nomes divinos do deus
grande e só um é um nome terrestre. Os nomes divinos pertencem só aos deuses;
não podem ser usados pelos homens e devem pronunciar-se com respeito.
A relação entre o deus grande e o
deus menor não é a de pai-filho, e Marshal põe-na em relevo para fazer notar a
diferença da idéia Bosquímane em relação à cristã de Deus-Pai e Deus-Filho.
Trata-se duma relação padrinho-afilhado !gu!na-!guina, que no sistema de
parentesco bosquímane exprime uma relação divertida, respeitosa, pela
diversidade de idade, mas não consentida entre pai e filho.
Os montes dos deuses são objeto de
profundo respeito; não devem ser pronunciados em vão, especialmente pelas
crianças (p.225). Marshall registrou também as transformações recentes do conceito
de deus. Os contos mitológicos das festas dos heróis confundem-se com a
descrição da atividade divina. Hoje, segundo Marshall, as duas figuras
fundiram-se numa imagem bastante antropomórfica do antigo criador.
A concepção dualista que distingue
as crenças dos Bosquímanes, embora sendo fundamental, não é tão precisa como se
poderia concluir, acentuando a polaridade do deus grande e do deus pequeno. Na
realidade, a sua relação com os homens é alternadamente boa e ruim, e
exprime-se nos tons da vida, mas também nas calamidades e na morte. Tanto um
como o outro dão o bem e dão o mal,e algumas vezes o mal deriva do seu
desacordo (pp. 244-245).
Também os aborígenes Australianos
pertencem ao teísmo silvestre. De fato, são recoletores, não praticam qualquer
forma de agricultura e de criação e vivem, como os Bosquímanes, numa selva, que
é a estepe.
Os etnemas religiosos tradicionais
são assaz complexos. Elkin (1956) atribui três características à sua
“filosofia”: espiritual, totêmica e histórica (p.139). A concepção espiritual
exprime-se pela crença em seres espirituais que enchem o mundo e que inçaram de
vez em quando, tomando forma de vida humana. Porém, na base de toda esta
complexa visão cosmológica está a figura do ser supremo e da sua atividade.
Cada grupo dá um nome a este ser; os
Kamilaroi chamam-lhe Baiame, os Kurnai cham-lhe Bunfil e os Yuyin dão o nome de
Daramulun.
A característica comum destes
múltiplos seres é a atividade criativa e a indicação de todos os ordenamentos
sociais e religiosos dos homens. Por este motivo são chamados “heróis
culturais”; mas porque, depois donde tinham vindo, são também chamados “heróis
celestes”. A tendência para identificar o criador com qualquer herói cultural,
já assinalada entre os Bosquímanes, encontra-se bastante difundida; existe em
numerosas culturas de maneira mais ou menos evidente.
“O herói celeste”, escreve Elkin, “era freqüentemente concebido como o herói
que conduziu a tribo ao seu local presente e fez a Terra com as suas
características atuais. Além disso, deu aos homens vários elementos da cultura
material, ditou-lhes as leis sociais, e, sobretudo, instituiu os ritos de
iniciação” (p.218). A figura do ser supremo apresenta-se, assim,
intimamente associada, entre os aborígines Australianos, não apenas às formas
propriamente silvestres, mas também às instituições e às estruturas sociais. As
iniciações reconstituem “dramaticamente a
era do sonho, isto é, os tempos dos primórdios, para recobrar a plenitude
primigénia do impulso vital dado pelos
heróis culturais.” Analogicamente, a concepção totêmica, nas referências
lingüísticas e nos simbolismos estruturais, relembra constantemente a presença
dos antigos heróis aos homens de hoje.
5.3 O teísmo agrário.
A
característica distintiva das concepções religiosas e mágicas dos agricultores
é a vida como fecundidade. O conceito de fecundidade deve compreender-se, em
sentido lato, como fertilidade dos campos e das famílias e sempre como
continuidade da vida e da sociedade no vínculo permanente com os antepassados.
A fé no ser supremo cede perante o
predomínio dos antepassados ou de outros seres primordiais. Na mitologia dos
Wogeo, habitantes da ilha de Schouten, ao Norte da Nova Guiné, os heróis
culturais – manarang – criaram a ordem a partir do caos primordial; modelaram o
ambiente físico, descobriram a utilidade das árvores e das plantas, inventaram
os instrumentos e as armas, deram origem aos costumes locais e, direta ou
indiretamente, introduziram os sistemas de magia. Cada um deles tinha
semelhanças humanas e agia como um ser humano, homem ou mulher, idoso ou jovem,
amante ou odioso; nascido, casado, com família, sujeito à morte; mas não eram
feitos de carne e sangue. Num dado momento, desapareceram em grande parte e, de
repente, apareceram os homens mortais, gente real como nós. Ninguém procura
saber de onde vieram estes passados das origens nem como terá sido possível
adquirir, depois do desaparecimento de tais mestres, as técnicas específicas e
deduzir as normas de comportamento estabelecidas. As gentes de hoje dizem
simplesmente que os heróis, ao irem-se embora, levaram somente a sombra
(vanuru) das coisas e deixaram os objetos (ramata, literalmente, “pessoas”). (HOGBIN,
1970. p.27).
O predomínio dos antepassados no
teísmo agrário destaca-se também nas manifestações do culto, especialmente nas
ocasiões mais especiais e mais freqüentes, são dirigidas diretamente para os
antepassados. Por conseguinte, a relação dos homens com o ser supremo
debilita-se; sente-se como um ser longínquo e a sua invocação é rara. Desta
posição derivou, na linguagem da história das religiões, a expressão deus
otiosus, que descreve um ser supremo isolado, não invocado, afastado da
vida humana. Todavia, seria errado dar um valor excessivo a esta designação. Na
visão conceitual de muitas culturas agrárias não é possível separar o poder do
ser supremo do dos antepassados. Por exemplo, entre os Kikuyú, nas
circunstâncias de extrema gravidade, quando é evidente que só a intervenção do
ser supremo pode ser eficaz, o pai de família dirige-se aos antepassados para
que se reúnam aos seus filhos na oração para demonstrar que a situação é
verdadeiramente extrema. (KENYATTA, 1938. p.240).
O conceito de fecundidade é amiúde
ao valor do pensamento e da palavra. Temos um exemplo significativo na atividade
criadora de Gauteovan, o ser supremo dos Kogi da serra de Santa Marta, na
Colômbia. Gauteovan é a grande mãe que criou todas as coisas do mar, por meio
da aluna. Aluna é o pensamento, a imagem, a vontade, a memória, tudo o que é
atividade da mente. Não se trata de um conceito bem preciso, mas refere-se
àquela visão profunda do espírito da qual emergem as coisas que se traduzem em
realidade. (REICHEL-DOLMATOFF, 1951. p.9-14). Na África Ocidental, os Dogon,
conhecidos pela sua mitologia rica, dão muito relevo à força do pensamento e da
palavra do deus criador Amma. “Na origem,
antes de todas as coisas, havia Amma, que repousava sobre o nada. Quando Amma
começou as coisas, tinha o pensamento no seu cérebro. O pensamento tinha-o
escrito no seu cérebro. O pensamento era a primeira figura”. (GRIAULE, 1965.
p.61,87). A mitologia dogon procede com um vastíssimo giro descritivo, como que
para dar a medida do incomensurável mistério de deus antes de chegar ao homem.
A relação entre o homem e o cosmos, entre o bem e o mal, entre a vida e a
morte, emerge do mais profundo íntimo do espírito criativo. A correspondência
dos conceitos fundamentais, a proporção entre as coisas, a recomposição
contínua do equilíbrio, representa os elementos típicos da narrativa
mitológica: - Amma: nada; Pensamento: Signo; Palavra: Ação; Ovo cósmico: Estrutura
essencial; Vibração: ser; Unidade: Generalidade(GRIAULE, 1965).
A força da palavra como meio
criativo encontra-se freqüentemente nas culturas da Melanésia. E também nas
culturas peruanas e andinas.
Um outro aspecto típico do teísmo
agrário é a valorização simbólica da terra. Também ela está intimamente ligada
ao conceito de fecundidade. Antes de tudo, a terra proporciona o solo para
cultivar; nele se depositam as sementes que germinarão. A lavoura dos campos, a
obtenção excitante dos frutos, a angústia do desaire, a alegria do êxito das
colheitas, exprimem-se numa atitude de afeto e apego inteiramente normal e
coerente nas culturas agrárias. A terra, além disso, é a morada dos antepassados.
Eles foram os primeiros a ocupá-la, viveram sobre ela e foram nela sepultados.
Às vezes, fazem-se descrições da vida dos antepassados no interior da terra que
reproduzem a imagem da estrutura social à superfície. Deste modo, a terra
adquiriu um valor sagrado e um significado simbólico próprio e universal. Por
exemplo, entre os Tallensi do Gana a terra é considerada “viva”, num sentido
místico, como unidade total; tem o seu limite no horizonte e a sua vida
manifesta-se na relação com as criaturas que a habitam. (FORTES, 1945. p.142,43).
Deste conjunto de conceitos tiraram
o seu grande desenvolvimento o culto religioso e as práticas mágicas. A magia,
em especial, parece prosperar com maior amplitude nas culturas agrárias.
5.4 O teísmo pastoril.
A visão constante de céu e a ligação
sólida do homem ao gado que cria são as características fundamentais do teísmo
pastoril. Para o pastor, o céu apresenta-se como o símbolo mais evidente da
totalidade do cosmos e os animais dos seus rebanhos oferecem-lhe o meio de
pagar constantemente, com sacrifícios, as relações com o céu.
Normalmente, portanto, o ser supremo
tem um caráter urânico que lhe advém por meio das relações com os seres
celestes e as manifestações atmosféricas. É freqüentíssima a denominação “céu”
para exprimir o nome de deus. Os Samoiedas da Ásia setentrional chamam-lhe Num,
céu. Tängri, céu, é o ser supremo dos povos altaicos. Wak, céu, é o deus dos
Galla da Etiópia e do Quênia e dos Rendille dos Quênia.
Asis é o deus dos Kipsigis do
Quênia. Peristiany nota que as explicações que as gentes dão destes nomes são
várias.
Deus, espírito do céu, que é como o
vento e o ar, é o criador, o impulsionador de todas as coisas. Porque fez o
Mundo, é invocado nas orações como Kwoth ghana, espírito do universo, no
sentido de criador do universo. (EVANS-PRITCHARD
1956. p.4). Evans-Pritchard analisa o verbo cak, que “significa criação,
exnihilo, e quando se fala das coisas pode-se usar só em relação a deus”.
Na concepção de Nuer, deus é
espírito criativo. É também ran, uma pessoa viva, cujo yiegh, espírito
de vida, sustém o homem. Nunca se ouviu os Nuer dizer que ele tem forma humana,
mas, por ser onipresente e invisível, vê e ouve tudo o que acontece, pode ficar
inquieto e pode amar.
Nos atributos do ser supremo nuer
encontram-se de maneira bastante definida
os caracteres das figuras análogas do teísmo pastoril. Propositadamente,
transcreveu-se o texto de Evans-Pritchard, quer pelo seu valor documental quer
porque serviu, mais do que outros textos, para a discussão geral do problema.
Uma observação concludente é
oportuna depois desta breve exposição dos vários teísmos. Diz respeito à
impropriedade dos termos monoteísmos e politeísmo, aplicados a estas concepções
religioso-mágicas. Os dois termos, como já se disse, são alheios à visão
existencial das culturas, fora da área mediterrânica e cristã. Querer insistir
no seu uso em relação a estas culturas cria apenas motivos de confusão e constituem
um impedimento à compreensão etnémica e autônoma do seu valor. Não se trata de
definir o mono ou o poli, mas de compreender que a multiplicidade, talvez
contraditória, das forças misteriosas do cosmos se apresenta à mente humana
como partes integrantes da única realidade do universo.
5.5 A estratificação hierárquica dos espíritos.
A
concepção teísta, como se viu de maneira particular entre os Nuer, é
espiritualista. Não seria exato, em vez disso, chama-la animista. O termo
animismo, como a palavra primitivos, é uma sobrevivência das teorias
evolucionistas. Hoje continua ainda a fazer uso deles para indicar, de modo
compreensível, as “religiões-pagãs” (FROELICH, 1964). Mas o termo “pagão” está
ligado à história cristã e tem um significado negativo – sem religião - que o torna inutilizável para a classificação
geral. Em todo o caso, o animismo entendido neste sentido é muito diferente do
animismo descrito por Tylor como “crença em seres espirituais”, elemento mínimo
da religião.
O fenômeno animista, compreendido no
sentido novo de expressão dum modo singular de ver os seres e as coisas,
encontra-se, sobretudo, correlacionado com os fenômenos da natureza, seja
física (espíritos da natureza) seja humana (espíritos dos mortos e dos
antepassados).
A animação do universo por meio dos
espíritos é concebida de maneiras variadas e caracterizantes. Os aborígenes
Australianos sustentam que os heróis celestes deixaram em todo o território um
enormíssimo número de espíritos, alguns dos quais, entre outros, entram no
ventre das mulheres para encarnarem como homens.
As montanhas, os rios, as águas, as
árvores, os astros, não há coisa alguma ou ser que não possa ser considerado
como morada e manifestação de qualquer espírito.
Ordinariamente, os espíritos da
natureza não são considerados divinos nem tem um reconhecimento de culto. Às
vezes, pelo contrário, atribui-se-lhes um conjunto de capacidades superiores,
de forma subordinada entre si, e em torno dos lugares das suas manifestações estabelece-se
centros e formas de culto.
Há também casos em que são
considerados divindades e postos em relação direta e subordinada como o ser
supremo. Chega-se assim à formação dum verdadeiro panteão com uma
estratificação hierárquica de todos os espíritos do cosmos. É a este tipo de
concepção que, em geral, se aplica a designação de politeísmo, com os conseqüentes
equívocos que já se mencionaram.
5.6 O culto em geral.
As manifestações exteriores da
religião e da magia exprimem-se no culto. Também na exteriorização dos meios
cultuais nem sempre é possível traçar uma distinção nítida entre o que é
religioso e o que é mágico. A ação ritual desenvolve-se como um fato único.
Segundo experiência recolhida por Bernardo Bernardi entre os Meru do Quênia e
junto de outras populações africanas e americanas, em todos os atos do culto é
possível, mesmo na unidade do rito, reconhecer diversos níveis: o nível
empírico, mediante o qual se atua à base dos conhecimentos tradicionais sobre o
valor das coisas (ervas medicinais, partes do corpo da vítima sacrificada,
etc); o nível mágico, cuja ação se desenvolve, segundo um certo automatismo,
com palavras e gestos, a exatidão dos quais condiciona a eficácia do rito; o
nível religioso, mediante o qual se entrega à imponderável potência e vontade
da divindade.
O culto individual é, em geral,
íntimo e espontâneo e esgota-se na intimidade da mente e do pensamento. O culto
coletivo é sempre social e faz-se acompanhar, freqüentemente, com solenidades
exteriores. A espontaneidade pode acompanhar também o culto social,
especialmente nas sociedades privadas de normas escritas. Igualmente, quando há
uma tradição a respeitar e a ação se desenvolve sob a orientação dum mestre de
cerimônias, a medida da correspondência individual que dá frescura à repetição
tradicional é ampla.
As formas mais comuns do culto são a
oração e o sacrifício. A oração exprime a intenção do culto por forma verbal.
Numa obra sistemática, que foi considerada clássica durante muitos anos, Heiler
(1921) classificava a oração dos “primitivos” como ingênua ou naïve. Também
esta avaliação etnocêntrica acabou por se revelar incompleta. Entre os
“primitivos” há expressões simples e ingênuas de oração, e há complexas
formulações que acompanham as cerimônias. Uma destas é o chamado mito Bagre dos
Los Dagaa do Gana. Trata-se duma longa narração elaborada sobre a relação entre
deus, Naangmin, os seres da selva e o homem, recitada em parte antes e em parte
durante as cerimônias da associação Bagre.
A oração exprime-se através do
silêncio, da palavra e de gestos. O valor do silêncio como oração está bastante
espalhado. Neste sentido se interpreta a breve paragem dos Andamaneses antes da
partilha da peça de caça. No silêncio e no isolamento dá-se a procura do
espírito protetor por parte dos jovens índios da América do Norte. A forma
litânica, na qual o corifeu exprime a intenção e o coro confirma com uma
invocação rítmica e estereotipada, é freqüentíssima entre os pastores. A dança
é uma oração de gestos: por meio da música, do ritmo dos movimentos e das
máscaras procura estabelecer o contato com o mundo místico.
O sacrifício tem um valor simbólico
preciso: a oferenda, da qual o homem se priva, exprime a dependência da
divindade. É evidente que a expressão total, neste aspecto, se tem no
sacrifício humano. Algumas culturas, sobretudo do tipo agrário, deram uma
importância aberrante a esta forma de sacrifício.
Em geral, porém, o sacrifício humano
é raro. Encontra-se sempre uma vítima animal para substituir o homem. A
importância máxima do sacrifício de animais encontra-se, como já foi indicado,
no teísmo pastoril. Mas também aqui a preciosidade do gado leva a encontrar um
substituto nos pequenos animais do rebanho ou da corte e, em vez destes,
recorre-se espontaneamente a frutos vegetais.
A natureza do sacrifício corresponde
ao aspecto ecológico da cultura. Assim como os pastores oferecem os animais que
criam, bovinos, cavalos, renas, etc., os agricultores oferecem as suas
colheitas. As celebrações das festas das colheitas ou das sementeiras assinalam
as estações do calendário. No teísmo silvestre, o sacrifício consiste na oferta
de uma porção mínima da caça (parte do coração ou do fígado) ou da colheita (um
pedaço do favo de mel) e que por esta razão é chamada, embora também
impropriamente, primícia.
O objetivo genérico do culto é
estabelecer uma relação com a divindade ou com os espíritos, quer para atingir
um contato direto e pessoal (visões, êxtases, estado de possessão), quer para
obter proteção e ajuda, quer para reparar uma culpa cometida. Neste sentido, há
uma correspondência entre a finalidade do culto e o ordenamento das divindades
e dos espíritos. Em geral, recorre-se ao ser supremo em circunstâncias graves e
solenes, proporcionadas ao seu poder e à sua grandeza; os espíritos da natureza
são invocados segundo as suas características; os antepassados têm uma relação
direta com os seus parentes e, mais genericamente, com todo o seu povo.
O culto dos antepassados, como já se
fez notar, tem um desenvolvimento particular no teísmo agrário, mas requer uma
explicação ulterior. Antes de mais, não corresponde literalmente ao culto dos mortos;
nem todos os mortos são considerados “antepassados”. Aproximadamente, pode
dizer-se que o culto dos defuntos respeita ao conjunto das cerimônias para a
sepultura. Por vezes, estão são reduzidas ao mínimo (por exemplo, antigamente,
entre os Kikuyú do Quênia), enquanto o culto dos antepassados é muito complexo.
O defunto só se torna antepassado depois do cumprimento duma série de
cerimônias, nas quais se incluiu a sepultura; e antepassados são somente as
pessoas que em vida tiveram uma importância social, que no âmbito do parentesco
quer na atividade social. Mbiti propõe substituir o temo ancestors pela
expressão the living-deal – os mortos vivos, para sublinhar o conceito de
continuidade.
A expressão inglesa acestors woship,
que literalmente se traduz por “adoração dos antepassados”, ocasionou a
definição de alguns escritores africanos (KENYATTA, MBITI). Não se trata, de
fato, duma adoração; os antepassados não são considerados divindades, senão no
caso da sobreposição do primeiro antepassado pelo ser supremo, mas apenas
espíritos de mortos que foram vivos. A motivação do seu culto é a coordenação
com os parentes vivos e, logicamente, pode-se considerar como uma “comunhão”,
ou seja, uma correspondência de relações, como sugere Kenyatta: communion with
ancestral spirits, comunhão com os espíritos antepassados (KENYATTA, 1938. p.26).
Os lugares de culto podem
encontrar-se onde quer que seja e cada lugar, no próprio momento em que se
realiza o ato cultual, pode ser sagrado. Isto mostra mais uma vez o caráter existencial
das religiões etnológicas e a artificialidade da distinção entre sagrado e
profano.
Por outro lado, há locais, como
bosques, cascatas, fontes, etc., mais precisamente ligados a manifestações de
espíritos especiais. Os termos “santuário”, shrine, e “altar”, autel, tem
acepções mais vastas na linguagem antropológica do que na linguagem comum,
ligada à cultura e tradição cristã, e não estão necessariamente restritas a
formas arquitetônicas precisas. “Santuário” ou shrine pode indicar um centro de
culto de qualquer espírito, seja no interior duma casa seja nas suas
proximidades, e encontra-se nas formas mais variadas, que podem ser construções
análogas às casas habitadas, ou também simples objetos, escabelos, ramos de
árvores, montes de pedra ou de terra, etc. O altar, analogamente, não é só a
ara romana ou a mesa cristã, é um objeto qualquer ou local, feito de pedra ou a
própria pedra, sobre o qual se oferecesse um sacrifício ou uma libação. A sua
forma não é manifesta e escapa quase sempre à observação superficial.
5.7 Mediação e culto: os sacerdotes.
O exercício do culto não exige
necessariamente um mediador. Há cultos e sociedades em que se não aceita sequer
a idéia de mediação e onde não existe sacerdócio. Entre as grandes religiões, o
Islão ortodoxo, por exemplo, não tem sacerdotes e os adidos às mesquitas são
meros servidores (Maomé não é um mediador, mas apenas profeta). Todavia, a
necessidade de chegar mais facilmente ao contato com a divindade e com os
espíritos por meio dum intermediário está muito espalhada. O sacerdote é o
homem da mediação cultual. O elemento fundamental do sacerdócio consiste no
direito de representação sagrada. Trata-se duma representação ambivalente que
permite ao sacerdote representar o seu grupo perante a divindade e a divindade
perante o seu grupo.
Devem distinguir-se duas formas
sacerdotais: o sacerdócio ocasional e o sacerdócio profissional. No sacerdócio
ocasional, a atividade sacerdotal é exercida somente segundo a necessidade do
momento. O tipo mais autêntico de sacerdócio ocasional e, talvez, do próprio
sacerdócio é a atividade sacral do pai de família. Pela sua função no grupo
familiar, o pai possui um direito de representação que afeta mesmo as relações
com a divindade e os espíritos. A figura do pai sacerdote revela-se
principalmente onde o parentesco tem um valor estrutural proeminente e em
relação ao culto dos antepassados. Mas a sua representação sacral estende-se
também aos atos referentes ao ser supremo nos momentos de particular urgência
ou gravidade para a família. Fortes escreve, acerca dos Tallensi do Gana, que “a autoridade jurídica e ritual reside nos
homens que se encontram na condição de pais. Ninguém, enquanto não morre o seu
pai, possui independência jurídica ou pode oferecer diretamente um sacrifício a
um antepassado da linhagem” (FORTES, 1959. p.27,30). O mesmo direito
observara Lindblom a respeito dos Kamba do Quênia: “Um filho não pode oferecer sacrifícios enquanto o pai vive, nem o pode
fazer uma mulher, exceto em casos especiais e só quando o ordena o adivinho ou
o mágico-médico”. (LINDBLOM, 1916. p.217-18).
Análogo ao sacerdócio ocasional do
pai de família é o do chefe de parentesco (clã ou linhagem), dos chefes em
geral e do rei-divino. Normalmente, a função e a condição social de quem,
ocasionalmente, exerce uma atividade sacerdotal são de outra ordem (pai, chefe,
rei), mas podem tornar-se “sacerdotais” graças a polivalência do direito de
representação, que inclui, também, o aspecto sacral.
O sacerdócio profissional é
representado pelo reconhecimento de funções sacras, como qualificação social
permanente, a ponto de constituir a condição e atividade normal de quem nelas
está investida. As formas mais típicas encontram-se, sobretudo, mas não
exclusivamente, nas religiões chamadas “politeístas”. Correspondendo às
variedades e fluidez renovadas das “divindades encontram-se outras tantas
formas de cultos específicos com sacerdotes, por vezes associados também em
“colégios”.
As antigas descrições do Taiti
apresentam-nos um quadro bastante articulado da vida religiosa daquelas ilhas.
Cada atividade e cada mester eram postos sob a égide dum deus protetor, com
edifícios sagrados separados e sacerdotes especializados. Os templos, marae,
podiam ser públicos e particulares; locais, territoriais, intraterritoriais,
visitados estes últimos pelas gentes de toda a Polinésia Oriental. Para se
tornar sacerdote, tahré a-pure, era necessária a escola de outros
especialistas, com o fim de “aprender as invocações” e adquirir a capacidade de
se por em contacto com os espíritos-divindades. O exame que o candidato fazia
perante a assembléia de sacerdotes, se era positivo, admitia-o à festa pública,
templo territorial, que lhe conferia a consagração, ou seja, o direito de
representação sacral. (HENRY, 1962. p.162-163.)
Parrinder (1949) descreveu-nos o
tirocínio dos “sacerdotes” no sistema religioso da África Ocidental,
especialmente entre os Fon do Daomey. Os candidatos são escolhidos pelo
espírito que deles se apossa no paroxismo da dança. Há uma distinção entre
“sacerdotes” e “oblatos”; os sacerdotes, olorishá, são proprietários da
divindade; o seu ofício é hereditário na família; os oblatos são chamados
“mulheres do deus”: iyawo, aya-orishá, vodem-si – porque no período da formação
não devem ter relações sexuais, mesmo se forem casados. No fim do período de
formação a sua nova condição perante a divindade é ratificada através dum
sacrifício durante o qual o novo sacerdote diz à divindade; “Hoje contraíste matrimônio comigo”.
Amadurecido assim o seu direito de representação sacral, fica livre para volta
à vida ordinária, para se casar ou para retomar as relações sexuais.
O período de segregação dos
candidatos Fon dura cerca de três anos para uma moça e nove meses para um
jovem. Durante este período, a vida é comunitária, sob a vigilância dos
sacerdotes antigos, com cerimônias de iniciação elaboradas. A disciplina é
bastante severa; nos casos de transgressões graves constitui-se um tribunal
especial de iniciados. Contra as culpas sexuais a pena máxima, no passado,
podia ser a morte, atualmente é a expulsão. Uma formação tão severa dá ao
candidato uma personalidade nova, não só no sentido psicológico e moral, mas
também pelo conjunto de conhecimentos específicos que adquire, entre os quais a
língua crítica do culto; quando o novo sacerdote volta para a família,
comporta-se durante alguns dias como se não compreendesse já a língua materna.
Os sacerdotes possuidores do culto,
passado o período iniciatório, não vivem separados, mas integram-se
completamente nas atividades sociais. Nestas atividades, entre as quais a
política, podem assumir tarefas e funções predominantes; muito depende da
personalidade e da sorte do indivíduo. É um fato que nas sociedades “políticas”
a posição dos sacerdotes é sempre de máximo poder, acima do qual impende só o
poder absoluto do monarca.
Das figuras autênticas de
sacerdotes, que desenvolvem uma atividade de pura meditação, devem
distinguir-se os “para-sacerdotes”. Estes se diferenciam porque a sua profissão
é de caráter técnico, ao serviço de clientes. Tais são, por exemplo, o
adivinho, o mago-médico, o profeta, etc. Pode acontecer que também esses
exerçam a atividade ocasional de mediação sacral, mas a sua função
religioso-mágica normal não é sacerdotal.
5.8 A adivinhação: o adivinho.
Na história religiosa da humanidade
a arte da adivinhação ou mântica está espalhadíssima e apresenta aspectos
bastante complexos. Pode-se dizer que representa uma manifestação constante da
cultura humana, própria do etnema mágico-religioso. À conspícua bibliografia
sobre mântica dos antigos povos do Médio Oriente e mediterrâneo (Mesopotâmia,
Etrúria, Grécia, Roma, etc) (BOUCHÉ-LECLERCQ, 1879. p.82; CAQUOT, 1968)
juntou-se nos últimos decênios uma documentação etnográfica sempre mais vasta.
O problema situa-se na necessidade
humana de descobrir, para o bem-estar da vida, o que está escondido no mistério
do cosmos. Se se tiver presente este dado fundamental, não teremos dificuldade
em admitir o caráter simultaneamente religioso e mágico da arte divinatória. A
atividade mântica pode, de fato, basear-se no contacto com uma divindade ou,
então, no recurso a meios empíricos de observação, mas tenta sempre “descobrir o que é desconhecido e que,
freqüentemente, não pode ser revelado mediante experiências e a lógica” (EVANS-PRICHARD,
1937. p.11).
Essencialmente, a adivinhação é uma
técnica de leitura de certos sinais, naturais ou artificiais, para obter
informações e conhecimentos úteis. Os sinais naturais, os astros, a atmosfera,
o movimento dos animais e das aves, as linhas da mão, as rugas do corpo, os
sonhos, tem um valor casual que se torna
significativo através da leitura interpretativa do adivinho. Os sinais
artificiais são procurados diretamente pela leitura divinatória. A
interpretação dos sinais leva o adivinho a exprimir prognósticos augurais (os
amina dos latinos) e respostas ou oráculos (orácula).
A astrologia era a técnica mais
difundida na antiguidade clássica; ainda o é na Índia e voltou a espalhar-se no
mundo ocidental, especialmente com o horóscopo.
Muito exatamente observa Forelich
que o adivinho não é um vulgar charlatão. Crê na eficácia da sua arte e
valoriza as suas capacidades psicológicas para compreender e pressentir as
intenções do cliente. Por outras palavras, o adivinho é o técnico do diagnóstico;
descobre a causa do mal ou a chave do problema, mas não é a ele que cabe fazer
a cura ou o sacrifício prescrito; quando muito, dirige o desenvolvimento exato
da ação.
Entre os vários conhecimentos do
adivinho, há também as virtudes medicinais das ervas e de outras substâncias.
Neste sentido, é herbanário e mago-médico. Em geral, contudo, nas sociedades e
culturas em que a medicina não é uma ciência sistemática, não existe um
profissional específico para a cura das doenças. Há tradições e conhecimentos
empíricos que todos conhecem e que ampliam segundo as necessidades. Assim,
algumas vezes a cura do doente é um momento típico de intercâmbio social. Isso
acontece, sobretudo, nas sociedades de pequeno âmbito, como, por exemplo, entre
os Bosquímanos, onde a cura do doente leva todos os membros do grupo a
unirem-se para realizar a dança mediúnica a fim de com ela obter a cura. Em
algumas situações modernas, por exemplo, na República da África do Sul, foi
instituída uma licença de herbanário para reconhecer legalmente a atividade
médica tradicional do médico-adivinho.
5.9 A feitiçaria: o feiticeiro.
Aquilo que se disse já sobre a
aceitação social do xamã é certo e aplica-se a todos os agentes do culto,
sacerdotes, adivinhos, mágico-médicos. Mas não é verdadeiro nem se aplica ao
feiticeiro ou a quem pratique atividades de feitiçaria. O feiticeiro e as
bruxas surgem como figuras anti-sociais. Quando descobertos e detidos como
culpados, são condenados, mesmo com a pena de morte. Esta primeira observação, aparte
quaisquer outras considerações sobre a crença na feitiçaria, serve para
distinguir nitidamente a figura e a função do feiticeiro, da figura e das
funções dos agentes do culto. Freqüentemente, ainda se confundem todos estes
tipos e com o nome de feiticeiro define-se quem quer que, nas culturas e nas
sociedades não ocidentais, exerça uma atividade de culto.
Na noção tradicional da magia
costuma-se distinguir a magia branca e a magia negra; a feitiçaria pertence à
magia negra. Enquanto a magia branca opera às claras e tem fins benéficos, a
magia negra usa as trevas e a obscuridade para fins maléficos. O conceito de
feitiçaria, todavia, não coincide exata e completamente com o de magia negra.
Evans-Pritchard, no campo da antropologia, foi o primeiro a por em relevo a
distinção, encontrada entre os Zande, entre magia negra (sorcery) e feitiçaria
(witchcraft).
O automatismo natural e “psíquico”
da feitiçaria (mangu, witchcraft) encontra uma analogia singular no conceito
napolitano de “jettatura” (mau-olhado). Segundo De Martino, a ideologia
napolitana da “jettatura” está ligada ao iluminismo e é um “elemento de relação e de compromisso entre o
fascínio feiticeiro da baixa magia cerimonial e as exigências racionais do
século das luzes”. Como se vê, a correspondência analógica entre o conceito
zande de mangu, interpretado por Evans-Pritchard (um ato psíquico), e o
conceito napolitano de “jettatura”, descrito por De Martino (um poder
psíquico), é notabilíssima. Isto põe em relevo que o aspecto racionalista da concepção
mágica não é somente uma característica da cultura iluminista.
Se quisesse encontrar uma relação
entre a tradução italiana da dicotomia zande e a tradução inglesa de
Evans-Pritchard, seria necessário reservar o termo stregoneria (feitiçaria)
para gbigbita ngwa = sorcery, ou seja, para descrever a “baixa magia
cerimonial” feita de fascinação e de atos “deliberadamente urdidos com um
cerimonial definido”, enquanto o termo napolitano jettatura (mau-olhado)
serviria bem para mangu = witchcraft, para indicar um poder ou um ato oculto,
psíquico.
Tanto a “jettatura” como a
mangu/witchcraft são concepções típicas, mas não universais. Na realidade, a
concepção mágica de feitiçaria é muito mais variada e complexa. Nalgumas
culturas não está muito desenvolvida e crê-se que a malignidade atinge a sua
culminância com o uso do veneno, isto é, com uma ação voluntária do homem; o
feiticeiro é um envenenador. Mas há outras culturas em que a feitiçaria é
identificada com atitudes externas, com palavras de maldição. Em todo o caso, a
feitiçaria é o mal, o ódio; por isso é universalmente condenada.
Uma pergunta pertinente diz respeito
à identidade do feiticeiro. Uma vez que a feitiçaria é anti-social, ninguém
pode, impunemente, confessar-se feiticeiro; seria o máximo da injúria. Segue-se
que ninguém é feiticeiro e todos são feiticeiros, no sentido de que a suspeita
pode tocar qualquer um. Na prática, faz-se uma seleção.
5.10 Conservação e reforma: o profeta.
A
atividade religiosa e mágica serve-se de noções e de normas rituais devidamente
conservadas e transmitidas como parte da herança cultural comum de uma
sociedade. Visto que a eficácia dos ritos se mantém quase sempre subordinada à
observância da tradição, é importante que ela seja transmitida com
autenticidade.
Perante esta exigência, é diferente
a situação das sociedades que confiam a tradição à escrita das que se servem da
simples transmissão oral. Como já se observou, nestas últimas sociedades a
iniciativa individual dos agentes do culto encontram mais amplo e mais fácil
âmbito para a iniciativa individual, embora continuando firme o respeito pela
tradição. Na sociedade com tradição escrita, a letra tende a sobrepor-se à
espontaneidade e à rapidez, e a própria escritura assume um valor autônomo de
sacralidade.
Também a estrutura institucional
apresenta aspectos diversos. A tendência associativa, para constituir-se em igreja, não é apanágio
apenas da religião, como afirmava Durkheim, mas também da atividade religiosa e
mágica. Em todo o caso, são muitas as sociedades, e não só “simples” ou
“primitivas”, nas quais a atividade religiosa e mágica não dá lugar a estrutura
social. Nas sociedades deste gênero não se encontram igrejas, nem corpos
colegiais de agentes do culto, mas a atividade religiosa e mágica desenvolve-se
segundo uma exigência existencial, no âmbito das estruturas do parentesco ou
políticas, e os agentes do culto, sacerdotes ocasionais, adivinhos ou xamãs,
são considerados na mesma medida que todos os outros membros da sociedade.
Entretanto, são numerosas as sociedades nas quais o etnema religioso-mágico se
reveste de formas associativas eclesiásticas, com corporações sacerdotais ou de
profissionais do culto.
Em todo o caso, exista ou não escritura,
exista ou não estruturas eclesiásticas, deve-se reconhecer uma forte tendência
conservadora como típica do etnema religioso-mágico. Esta tendência genérica é
reforçada pelos interesses da classe sacerdotal e causa um desfazimento entre a
conservação tradicional e a exigência renovadora do momento existencial
bastante profundo, criando motivo de desentendimento e de conflito. A superação
de situações deste gênero consegue-se por meio da reforma.
O profeta, em sentido antropológico,
é o homem da reforma. Assume a tarefa de denunciar o desfazimento entre o respeito
da tradição e da letra e a realidade existencial, e faz-se promotor de novas
normas e de novas estruturas.
A palavra profeta deriva do antigo
verbo grego pro-phemi pro-phémi, que
significa “dizer antes, com antecipação”,
explicando aos outros aquilo que já conhece por revelação dum oráculo. Platão,
no Timeo, 72b, chama profetas “àqueles que falam em “êxtase”. Na tradição
bíblica, profeta corresponde ao hebraico nabi; podem-se distinguir três
categorias: os “profetas fanáticos”, reunidos em grupos ou escolas, com
manifestações frenéticas e atitudes estranhas e violentas; os “videntes”,
hábeis em predizer e em resolver situações difíceis, sendo, portanto,
consultados por pessoas, como Saul consultou Samuel devido à perda das jumentas
do pai (I Sam.9:6); os “grandes profetas” investidos de uma missão divina,
expressa mediante mensagens ao povo, para a reforma religiosa, social e
política.
Todas estas concepções se encontram
nas culturas não bíblicas e extra-ocidentais, mas, no significado antropológico,
a atividade reformista constitui o elemento discriminante.
Na missão do profeta podem
distinguir-se os momentos iniciais, reformista e conclusivo. O momento inicial
respeita à vocação ou à investidura do profeta. Apresenta notáveis analogias
com a chamada do xamã: o espírito toma posse do futuro profeta. O seu
comportamento torna-se estranho, isola-se, jejua ou alimenta-se de comidas
repugnantes. É um período de demência e as gentes consideram-no louco. Por fim,
acaba-se por reconhecer nesta loucura o sinal da missão.
Se em certos aspectos o profeta
apresenta analogias com o xamã, diferencia-se deste porque não efetua uma
atividade técnica de cura, mas uma atividade moral de conselho, de guia e de
reforma. É neste momento reformista que se salienta a personalidade carismática
do profeta. A sua mensagem ressoa, as gentes consultam-no, rodeiam-no,
seguem-no com confiança e exaltação até ao fanatismo. A atividade reformista
deve ser entendida em sentido geral; pode limitar-se a um simples conselho
indicativo e pode chegar a uma ação peremptória de mudança. Depende muito da
natureza da mensagem e da personalidade do profeta.
O sucesso ou insucesso assinala o
momento conclusivo do profeta. Se a sua ação reformadora é acolhida, ele
coloca-se à frente de uma situação nova que tende a institucionalizar-se e a
estabilizar-se. O insucesso marca o seu fim, por vezes mesmo violento. A
situação complica-se se, como acontece freqüentemente, o profeta junta à
reforma moral a promoção de movimentos políticos. Enquanto a reforma moral o
coloca em contraste com a autoridade estabelecida, a ação política expõe-se ao
confronto e torna-o chefe duma facção.
5.11 Os movimentos de reforma religiosa.
A proliferação dos movimentos de
reforma religiosa é um dos fenômenos mais significativos da dinâmica cultural,
posto em movimento pela situação colonial. O significado do fenômeno não está
só ligado à situação colonial como tem também um valor essencial. As condições
de angústia, de sofrimento, de opressão, específicas da situação colonial,
manifestam-se com trágica fatalidade nas vivências humanas por muitas causas e
noutras situações. Fatalidades
individuais, calamidades coletivas, cataclismos naturais, põem a nu as
insuficiências da condição humana, mas também das instituições sociais, e
constituem, amiúde, o momento determinado para mudanças e renovações culturais
e sociais. Pela impotência perante os acontecimentos o homem aprende a
avaliar-se a si mesmo e a provar a validade ou não dos conhecimentos culturais,
a eficiência ou ineficiência dos ordenamentos sociais. Assim, é levado a tentar
novos caminhos e refugia-se, de modo místico, na esperança de nova salvação.
Nesta expectativa do que há de vir encontra resposta imediata a profunda
necessidade de cada homem, de dignidade, autonomia, independência e vida.
Os movimentos de reforma religiosa
são conhecidos sob muitas denominações, cada uma relativa às circunstâncias
históricas em que se deram, ao seu conteúdo e também ao nome do profeta que foi
o seu promotor. La Barre, num ensaio comparativo, chamou-lhes, sinteticamente,
crisis cults – cultos derivados da crise. A crise, segundo La Barre, “é uma frustração profundamente sentida ou um
problema basilar que não pode ser resolvido por métodos ordinários (de rotina),
seculares ou sacros” (LA BARRE, 1971:11). No conceito de crise encontra-se
o elemento comum que está na origem destes movimentos. A referência ao culto
destaca um dos muitos aspectos do fenômeno, postos em relevo por várias
denominações e catalogados sob títulos genéricos (neopagãos, islâmicos,
hebraicos, cristãos); movimentos de adaptação, de espera de salvação,
antifeiticistas, cultuais, quiliásticos, escatológicos, de guerra santa, de
liberdade e salvação, messiânicos, milenaristas, de massa, nativistas,
populares, proféticos, revitalistas, revivalistas, de rebelião, de revolta,
sincretistas, visionários, etc., etc.
O valor essencial e universal dos
movimentos de reforma religiosa como manifestação da dinâmica cultural pode já se
observar na mitologia. As narrações mitológicas e as gestas dos heróis
culturais desenvolvem-se freqüentemente em volta de temas de superação do caos,
do domínio das forças naturais, da introdução de novos sistemas de agricultura
ou criação, de rebelião contra tiranos, de libertação ou de chegada a uma terra
prometida. Se for verdade que estes mitos pertencem a um gênero literário que
dá corpo e explicação à história primigénia dos povos, também é verdade que há
muitos particulares tecidos em volta da figura histórica de homens
excepcionais, exaltados, depois da morte, a um papel heróico mítico. A este
tipo pertencem os mitos sobre os fundadores das dinastias ou sobre antepassados
de parentescos que, segundo se julga, possuem um poder místico.
Na história moderna os movimentos da
história religiosa têm-se multiplicado em toda a parte. Na Oceania, o tipo mais
espalhado é o do cargo cults = cultos do cargueiro. Trata-se dum módulo ao qual
se conformam diversos movimentos das ilhas oceânicas com alusão aos vapores
mercantis europeus que chegam de regiões longínquas e desconhecidas com uma
carga de mercadorias riquíssimas; de maneira análoga, vinda de regiões místicas,
chegaram os antepassados num barco branco (pelo que os cultos se dizem também
do “navio”), não só trazendo a prosperidade, mas, sobretudo a independência
política.
Na América do Norte, os movimentos
são conhecidos como ghost dances = danças dos espíritos. O termo refere-se ao
valor tradicional da dança como expressão do culto; os espíritos são os
antepassados que voltarão para tornar a dar a independência aos índios,
privados da sua cultura pela invasão européia. Análogo é o culto do peyote,
mais especificamente sincretista, iniciado por John Willson, que pregava a
fraternidade entre todas as gentes por meio da comunhão do peyote, uma espécie
de cacto que, comido, tem efeitos levemente alucinantes.
Na América Central o movimento mais
espalhado é o vudu (voudou ou, também vodou), no qual prevalecem os elementos
tradicionais das religiões africanas com técnicas de possessão. Bastante afins
ao vudu são o umbanda e o espiritismo, praticados numa multiplicidade de
cultos, sobretudo no Brasil.
Na Ásia, particularmente na Índia e
no Japão, os movimentos de reforma têm relação com o budismo.
Na África o fenômeno apresenta-se
com proporções vistosas. Barrett (1968) analisou em sentido comparativo seis
mil movimentos contemporâneos. Entre os numerosos profetas de reforma
aparecidos na África no período colonial, alguns suscitaram um séqüito
vastíssimo, originando, enquanto eram ainda vivos, processo de transformação,
mito-poiética, que os exaltou, depois, à categoria de divindades. A figura mais
típica neste gênero é Simon Kimbangu, do antigo Congo Belga, hoje Zaire.
Muitíssimas afirmações lendárias sobre a sua vulnerabilidade apareceram em
torno da sua pessoa, antes que fosse condenado à morte e depois condenado à
prisão perpétua. Hoje, o movimento kimbanguista é oficialmente reconhecido como
“Igreja de Jesus Cristo segundo Simon
Kimbangu”, e este Kimbangu é reconhecido como o Messias dos africanos, como
Cristo o foi dos brancos.
No desenvolvimento de cada movimento
podem-se reconhecer fases típicas do processo cultural. Antes de tudo, há uma
fase profética, que se acentua em torno da pessoa do profeta, o qual desenvolve
a sua atividade de reforma em tom muito polêmico contra o establishment, ou
seja, contra as instituições religiosas da Igreja estabelecida e também contra
a situação política, ou ainda, contra as crenças populares tradicionais. A fase
seguinte é mais calma, de consolidação do sucesso ou de paciente incubação
depois do insucesso: o movimento kimbanguista atravessou um período deste
gênero, durante a longa prisão de Simon Kimbangu. Por fim, dá-se uma terceira
fase, institucionalizante, na qual se corrobora a coesão interna do movimento:
ele próprio torna-se instituição, estrutura ou “igreja”, com doutrina e culto
oficial. Na medida em que os movimentos continuam a corresponder à realidade
existencial mantêm a sua vitalidade; se não, aparece depressa a necessidade de
renovação e de reforma das suas estruturas e da sua própria doutrina.
Não há culturas nem “religiões” que
não sofram o fenômeno de cristalização das suas estruturas e que, portanto, não
necessitem de reforma e de renovação. Este processo de diástole e de sístole
deve considerar-se elemento essencial da cultura e, em particular, do etnema
mágico-religioso. Na realidade, muitos episódios e muitas vivências do período
pós-conciliar nas Igrejas cristãs e, especialmente, na Igreja católica,
explicam-se e colocam-se nesta perspectiva.
VI O
Fenômeno Religioso-mágico como Sistema Cultural, Segundo
Clifford Geertz
.
No trabalho antropológico sobre religião levado a efeito a partir da II
Guerra Mundial, duas características destacam-se como curiosas quando se
compara esse trabalho com o desenvolvido antes e após a I Guerra. Uma delas é o
fato de não ter sido feito qualquer progresso teórico de maior importância; ele
continua a viver do capital conceptual de seus antepassados, acrescentando
muito pouco a ele, a não ser certo enriquecimento empírico. A segunda
característica é que esse trabalho continua a extrair os conceitos que utiliza
uma tradição intelectual estreitamente definida. Existem Durkheim, Weber, Freud
ou Malinowski, e qualquer trabalho segue a abordagem de uma ou duas dessas
figuras transcendentais, com apenas as poucas correções marginais exigidas pela
tendência natural ao excesso das mentes seminais ou em virtude da expansão do
montante da documentação descritiva religiosa. Praticamente ninguém pensa em
procurar idéias analíticas em outro lugar – na filosofia, na história, no
direito, na literatura ou em ciências mais “exatas” – como esses homens
fizeram. E o que ocorre, ainda, é que essas duas características não deixam de
ter relação uma com a outra.
Se o estudo antropológico da
religião está, de fato, num estado de estagnação geral, duvido que ele possa
por em movimento novamente apresentando apenas pequenas variações sobre temas
teóricos clássicos. E, no entanto, uma meticulosidade maior em relação a
proposições já bem estabelecidas, como a de que o culto dos ancestrais apóia a
autoridade dos mais velhos, de que os ritos de iniciação são meios de
estabelecer a identidade sexual e a posição de adulto, de que os grupos rituais
refletem oposições políticas ou de que os mitos fornecem os quadros das
instituições sociais e as racionalizações dos privilégios sociais, poderá
finalmente convencer um grande número de pessoas, tanto dentro como fora da
profissão, de que os antropólogos, como os teólogos, dedicaram-se firmemente a
comprovar o indubitável.
A discussão de Durkheim sobre a
natureza do sagrado, a metodologia Verstehenden de Weber, o paralelo de Freud
entre rituais pessoais e coletivos, e a exploração feita por Malinowski sobre a
diferença entre religião e senso comum – parecem-nos pontos de partida
inevitáveis para qualquer teoria antropológica da religião que seja útil. Mas
elas são apenas pontos de partida. Para ir além delas é preciso colocá-las num
contexto muito mais amplo do pensamento contemporâneo do que elas abrangem, com
elas e a partir delas. Todavia, os perigos de um tal procedimento são óbvios:
um ecletismo arbitrário, uma traficância teórica superficial e a simples
confusão intelectual.
Trabalhando para uma tal expansão do
âmbito conceptual no qual nossos estudos ocorrem, pode enveredar-se, sem
dúvida, por uma grande variedade de direções, e o problema inicial mais
importante é evitar tomar todas essas direções ao mesmo tempo, restringir-se-á
todo esforço ao desenvolvimento daquilo a que se refere seguindo Parsons e
Shils, como a dimensão cultural da análise religiosa.
Como vamos lidar com o significado,
comecemos com um paradigma: ou seja, que os símbolos sagrados funcionam para
sintetizar o ethos de um povo – o tom, o caráter e a qualidade da sua vida, seu
estilo e disposições morais e estéticos – e sua visão de mundo - o
Quadro que fazem
do que são as coisas na sua simples atualidade, suas idéias mais abrangentes
sobre ordem. Os símbolos religiosos formulam uma congruência básica entre um
estilo de vida particular e uma metafísica específica (implícita, no mais das
vezes) e, ao fazê-lo, sustentam cada uma delas com a autoridade emprestada do
outro.
A noção de que a religião ajusta as
ações humanas a uma ordem cósmica imaginada e projeta imagens da ordem cósmica
no plano da experiência humana não é novidade. Todavia, ela também não é
investigada e, em termos empíricos, sabemos muito pouco sobre como é realizado
esse milagre particular. Sabemos apenas que ele é realizado anualmente,
semanalmente, diariamente e, para algumas pessoas, até a cada hora, e dispomos
de uma enorme literatura etnográfica para demonstra-lo. Todavia, o arcabouço
teórico que nos permitiria fornecer um relato analítico do assunto, um relato
da espécie que fornecemos para a segmentação da linhagem, para a sucessão
política, as mudanças no trabalho ou a socialização da criança, este não
existe.
Vamos, portanto, reduzir nosso
paradigma a uma definição. Embora seja notório que as definições em si nada
estabelecem, se forem cuidadosamente construídas elas podem, por elas mesmas,
fornecer uma orientação ou reorientação útil do pensamento, de forma que
desenrola-las pode ser um caminho efetivo para desenvolver e controlar uma
linha nova de pesquisa. Elas têm a virtude muito útil de serem explícitas: elas
se comprometem de uma forma que a prosa discursiva não assume, pois sempre está
disposta a substituir o argumento por uma retórica, especialmente neste campo.
Portanto, sem mais cerimônias, uma religião é:
(1) um sistema
de símbolos que atua para (2) estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras
disposições e motivações nos homens através da (3) formulação de conceitos de
uma ordem de existência geral e (4) vestindo essas concepções com tal aura de
fatalidade que (5) as disposições e motivações parecem singularmente realistas.
O que Geertz diz é que a religião é
um sistema de transformação no qual os conceitos de ordem e a negação do caos,
juntamente com crença na justiça e na moralidade diante da injustiça e do mal,
são apaixonadamente afirmados como a realidade dominante diante da evidência
contrária. Através de transformações simbólicas, o senso humano inicial da
ordem e o direito moral é convincentemente afirmado ao crente que traz a marca
dos símbolos.
Pra um antropólogo, a importância da
religião está na capacidade de servir, tanto para um indivíduo como para um
grupo, de um lado como fonte de concepções gerais, embora diferentes, do mundo,
de si próprio e das relações entre elas – seu modo da atitude – e de outro, das
disposições “mentais” enraizadas, mas nem por isso menos distintas – seu modelo
para a atitude. A partir dessas funções culturais fluem, por sua vez, as suas
funções social e psicológica.
Os conceitos religiosos espalham-se
para além de seus contextos especificamente metafísicos, no sentido de fornecer
um arcabouço de idéias gerais em termos
das quais pode ser dada uma forma significativa a uma parte da experiência –
intelectual, emocional, moral. O cristão vê o movimento nazista contra o pano
de funda da Queda, a qual, embora não explique no sentido causal, coloca-o num
sentido moral, cognitivo e até afetivo. Um zande vê a queda de um celeiro sobre
um amigo ou parente contra o pano de fundo de uma emoção concreta e muito
especial de bruxaria e evita, assim, tanto os dilemas filosóficos quanto a
pressão psicológica do indeterminismo. Um javanês encontra no conceito do rasa
(“sentido-paladar-sentimento-significado”),
emprestado e re-elaborado, um meio através do qual “ver” os fenômenos
coreográficos, gustativos, emocionais e políticos a uma nova luz. Uma sinopse
da ordem cósmica, um conjunto de crenças religiosas, também apresentam um
polimento no mundo mundano das relações sociais e dos acontecimentos
psicológicos. Eles permitem que sejam apreendidos.
Mais que um polimento, porém, tais
crenças são também um gabarito. Elas não são meras intérpretes dos processos sociais
e psicológicos – mas também os modelam. Na doutrina do pecado original também
está embutida uma atitude recomendada em relação à vida, uma disposição
periódica e um conjunto persistente de motivações. O Zande aprende com as
concepções de feitiçaria não apenas a compreender os “acidentes” aparentes como
não sendo acidente algum, mas a reagir a esses acidentes espúrios com ódio pelo
agente que causou e a tomar as resoluções adequadas contra ele. O rasa, além de
ser um conceito de verdade, beleza e bem, é também um modo de experimentação
preferido, uma espécie de desligamento
sem afetação, uma variedade de brando alheamento, uma calma inatacável. As
disposições e motivações que uma orientação religiosa produz lançam uma luz
derivativa, lunar, sobre os aspectos sólidos da vida secular de um povo.
Reconstituir o papel social e
psicológico da religião não é, pois, tanto o caso de encontrar correlações
entre os atos rituais específicos e os laços sociais seculares específicos –
embora essas correlações existam, sem dúvida, e valha a pena prosseguir nas
investigações, principalmente se há algo a dizer a respeito delas. Ademais,
trata-se de compreender de que maneira as noções dos homens, embora implícitas
do “verdadeiramente real” e as disposições que essas noções induzem neles, dão
um colorido a seu sentido do racional, do prático, do humano e do moral. Até
onde isso alcança (em muitas sociedades os efeitos da religião parecem muito
circunscritos, enquanto em outras eles são inteiramente difundidos), quão
profundamente eles atingem (pois alguns homens e grupos de homens parecem
utilizar a religião com muita superficialidade no tocante ao mundo secular
enquanto outros parecem aplicar sua fé em cada ocasião, não importa quão
trivial), quais os resultados efetivos ( pois é muito variável o hiato entre o
que a religião recomenda e o que as pessoas fazem realmente, culturalmente) –
todos esses são temas cruciais na sociologia e na psicologia comparada da
religião. Até mesmo o grau em que os sistemas religiosos se desenvolvem parece
variar de modo extremo, e não apenas numa base evolutiva. Numa determinada
sociedade, o nível de elaboração das formulações simbólicas da realidade final
podem alcançar graus extraordinários de complexidade e de articulação
sistemática. Em outras sociedades, não menos desenvolvidas socialmente, tais
formulações podem permanecer primitivas no sentido verdadeiro, pouco mais do que
amontoados de crenças passadas fragmentárias e imagens isoladas, de reflexos
sagrados e pictografias espirituais. É preciso apenas pensar nos australianos e
nos bosquímanos, nos Toradja e nos Alorese, nos Hopi e nos Apaches, nos hindus
e nos romanos, ou até mesmo nos italianos e nos poloneses, para ver que o grau
de articulação religiosa não é uma constante mesmo em sociedades de
complexidade semelhante.
O estudo antropológico da religião
é, portanto, uma operação em dois estágios: no primeiro, uma análise do sistema
de significados incorporado nos símbolos que formam a religião propriamente
dita e, no segundo, o relacionamento desses sistemas aos processos
sócio-estruturais e psicológicos. A pouca satisfação que se vêm obtendo com
grande parte do trabalho antropológico social e contemporâneo sobre religião
provém não do fato de ele se preocupar com o segundo estágio, mas do fato de
negligenciar o primeiro e, ao fazê-lo, considerar como certo aquilo que precisa
ser elucidado. Discutir o papel do culto dos ancestrais na regulamentação da
sucessão política, dos festins de sacrifício que definem as obrigações do
parentesco, da adoração dos espíritos na programação das práticas agrícolas, da
divinização para reforço do controle social ou dos ritos de iniciação para
apressar a maturação da personalidade não constitui tentativas pouco
importantes, e não se recomenda que elas sejam abandonadas em favor da espécie
de cabalismo árido no qual pode cair tão facilmente a análise simbólica de
crenças exóticas. Mas fazer essa tentativa tendo apenas uma idéia muito geral,
de senso comum, sobre o que representam o culto dos ancestrais, o sacrifício de
animais, a adoração do espírito, a divinização ou os ritos de iniciação como
padrões religiosos não parece muito promissor. Somente quando tivermos uma
análise teórica da ação simbólica comparável, em sofisticação, à qual temos
hoje para a ação social e para a ação psicológica, estaremos em condições de
enfrentar decisivamente aqueles aspectos da vida social e psicológica nos quais
a religião (ou a arte, a ciência, a ideologia) desempenha um papel
determinante.
VII
- A Questão Religião e Mística, Segundo
Jean-François Catalan.
“O desejo do homem é o desejo do
outro”, como já foi mencionado, e, na religião, esse desejo pode tomar a forma
de um desejo de Deus. Essa fórmula, tal como foi demonstrada, é ambígua, e esse
“desejo de Deus” não está isento de uma boa dose de narcisismo, pelo menos em
certos casos. O homem busca a si mesmo ao buscar Deus. O que não invalida o
fato de que a religião deve “falar ao desejo”; além disso, no caso de uma
religião como o cristianismo, que invoca um Deus pessoal, há que reconhecer que
certa forma de amor também está implicada. O “Tu amarás...”, de acordo com as próprias palavras do
Evangelho, é o primeiro e o maior dos mandamentos. Esse amor, por mais
sublimado que seja, é um amor humano: independentemente das transformações que
a religião possa impor-lhe, esse desejo continua sendo um desejo humano. Quando
tentamos definir com maior precisão esse objeto e esse amor, deparamo-nos com o
que se costuma chamar de dimensão mística da religião, embora nem toda religião
seja mística, e nem toda mística seja forçosamente religiosa, no sentido
estrito da palavra. Por isso, é conveniente entender o que chamamos de mística.
Dizemos que é uma dimensão
essencial, pois o que seria, na verdade, uma religião na qual não houvesse nem
desejo nem amor? Entretanto, e já o assinalamos, há outras dimensões ética (ou
o ‘senso do dever’), a atenção dada aos ritos e à liturgia, a preocupação com
os outros, ou o fato de pertencer (eventualmente de forma ativa e construtiva)
a uma instituição, etc.
7.1 A mística e as religiões.
Dizer que nem toda religião é
mística, e que nem toda mística é religiosa, é uma afirmação paradoxal e que
pode parecer excessiva. Como concilia-la com esta outra afirmação, segundo a
qual a mística remete a uma dimensão essencial da religião? No admirável
prefácio que o Pe. Henri de Lubac escreveu para o livro La Mystique et lês mystiques,
há algumas precisões interessantes[33]:
Poder-se-ia observar que
a religião é uma coisa, e o misticismo outra. Ainda não foi provado que a raiz
de todo sistema religioso deva ser buscada nos estados da consciência mística,
como queria William James e afirmava Alfred Loisy contra a doutrina bergsoniana
das “duas fontes”. Pelo menos é sabido que toda religião não é sempre
atualmente mística, e que toda mística também não é religiosa. O essencial da
religião de Hesíodo repousava, ao que parece, num legalismo piedoso, junto com
uma sabedoria que desconfiava das ambições muito elevadas. Os deuses gregos
“amam a medida” entre os homens... A religião dos antigos Romanos não só era
moral, como também não continha nenhum germe místico, embora comportasse um
elemento de verdadeira piedade. A própria palavra religio... parece ter
significado apenas o sentimento, acompanhado de temor e escrúpulo, de uma
obrigação para com as potências superiores. E mais perto de nós, uma grande
religião monoteísta não está a oferecer um caso análogo? O Alcorão, “código de
uma religião exterior e ritual”, deixa talvez aberto “pelo menos um vão
estreito para a irrupção do Espírito”, mas a comunidade muçulmana fecha
geralmente esse vão. Movida pela consciência confusa segundo a qual “a
intervenção da religião interior na religião legal deslocaria a armadura
histórica do Islã”, essa comunidade considera que “Deus não tem nenhuma necessidade dos homens, e só quer deles uma
obediência reverente. Por isso, ela condena a temeridade sacrílega daquele que
intenta a união divina”[34].
Essas constatações, que podem ser
esquemáticas, não devem dissimular um outro fato. Mesmo nas religiões mais ou
menos opostas ao misticismo, percebe-se freqüentemente um “impulso místico”,
como o Pe. De Lubac também notava:
Apesar dos interditos da ortodoxia muçulmana, é fato
que numerosos místicos surgiram em seu seio, vivendo um drama solitário no
interior de uma religião que tinham consciência de cumprir embora parecessem
ameaça-la indo além do que ela prescrevia. Quanto mais se observa a história
espiritual da humanidade, mais o misticismo aparece como fato virtualmente
universal[35].
E é certamente um fato cirtualmente
universal, pois o misticismo aparece até em contextos que se poderia chamar de
ateus. A Índia conhece um “yoga-sem-Deus”(na-isvara-yoga); certos exercícios e
certas concepções do budismo zen não tem, à primeira vista, nada de
especificamente religioso. Da mística tibetana, já se disse que ela parece
“fechar a porta ao conhecimento de Deus”. E, no Ocidente, Nietzsche proclamava:
“Sou místico e não creio em nada!”.
Há que reconhecer, ao menos, que certa forma de mística não se refere a nenhuma
religião revelada.
Essa (relativa) universalidade da
mística poderia induzir em erro: “Acabo
de ler sucessivamente, dizia alguém, textos sobre a bhakti, citações de autores
hassídicos, uma mensagem de São Francisco de Assis, e algumas palavras
budistas, e estou impressionado pela semelhança entre eles” (R. Daumal,
citado por Michel de Certeau, “Mystique”, Encyclopaedia Universalis, p. 1.036).
7.2 Orientações diferentes.
Pensa-se
tratar de impressão falaciosa, pois a mística “em si” não existe; ela só existe
em contextos, senão diretamente religiosos, pelo menos marcados por concepções
“metafísicas” através das quais o homem busca o sentido último da existência.
Mas aí também podem surgir divergências notáveis.
Catalan, sem querer entrar em
considerações teológicas que escapam à alçada do psicólogo, nota que o
cristianismo, e em sua esteira uma parte do Ocidente cristão e pós-cristão, dá
ênfase às relações interpessoais. O Deus cristão é Trindade de Pessoas, e a
este respeito a Teologia fala de relações subsistentes. Esse Deus, afirma-se, é
Pai, Filho, Espírito, Gerador, Engendrado e Laço de amor. É um Deus Criador,
daí o tipo de relação entre a criatura e ele, que exclui qualquer identidade: o
homem não é Deus, e não poderá vir a sê-lo, senão pela graça e participação,
como afirmava, entre muitos outros São João da Cruz. Enfim, esse Deus, pelo
fato da Incarnação, entre na história humana, que se torna assim “humano-divina”. Jesus de Nazaré não é
nem um mito nem um avatar: ele é historicamente situado e torna-se, para o
cristão, a referência incontornável.
Por aí se vê o que separa a mística
cristã de uma mística que, ao negar a história ou considera-la como mera ilusão
(a maya do hinduísmo), caracteriza-se pela ascensão em direção do Uno no qual
tudo se resolve a ponto de abolir qualquer distinção. “Tu és isto...”, eis o
que diz o místico hindu. Trata-se de uma mística da identidade, na qual tudo se
une para, em definitivo, se fundir. O eu tende a perder-se no todo.
Inversamente, a mística cristã – quer dela se diga que é
nupcial ou filial – nunca será uma mística da identidade; ela é união (por mais
íntima que seja essa união), e não fusão. Donde os obstáculos com os quais se
defrontaram aqueles que, em perspectivas que se queriam ecumênicas no mais
amplo sentido da palavra, haviam tentado aproximar cristianismo e hinduísmo.
Entre o Extremo Oriente, o Islã, o
judaísmo e o cristianismo (inclusive em seu interior), os caminhos da mística
podem, portanto, divergir largamente, assim como as suas realizações finais
podem diferir profundamente, apesar de algumas expressões às vezes similares.
A relação do místico com uma
religião revelada, com uma tradição, com uma comunidade humana (eclesial ou
não), com o mundo e com a história humana, etc., tomará formas diferentes.
Conforme o caso, um distanciamento da mística face às religiões estabelecidas
poderá resultar ou em frutuosos questionamentos internos, ou na marginalização
do místico, que tenderá a viver uma experiência solitária, com ou sem a
presença de gurus. Trata-se de uma tensão inevitável, bem conhecida em nossa
época, mas que também marcou no passado, e mais de uma vez, a história das
Igrejas.
VIII - A Maturidade
Religiosa Presente no Fenômeno Religioso-Mágico.
Este capítulo relaciona-se com todos os outros capítulos no aspecto
voltado para a evolução espiritual do homem. Tem-se observado diante de
diversas pesquisas como os conceitos dos adolescentes, do adulto ou da pessoa
idosa se diferem consideravelmente em cada uma das fases da vida, a religião
parece cumprir finalidades específicas, e apresentam características típicas em
cada uma dessas idades.
Tanto física como emocionalmente, há milhares de seres humanos que, por
circunstâncias várias, não atingirão um grau satisfatório de maturidade, quer
do ponto de vista físico quer do ponto de vista emocional. A longa história
religiosa do homem comprova que nem todos que professam uma fé alcançam
necessariamente maturidade espiritual.
Clark sugere que maturidade religiosa pode ser definida de dois modos: do
ponto de vista do indivíduo, e, nesse caso, representa o ponto máximo de seu
desenvolvimento religioso, ou do ponto de vista abstrato, segundo o qual
maturidade religiosa seria um conceito ideal pelo qual o desenvolvimento de
cada pessoa é avaliado. Clark define religião como sendo “a experiência
interior do indivíduo ao sentir o sobrenatural”, à luz dessa definição podemos
concluir que, na pessoa normal, o conceito de maturidade religiosa envolve a
consciência de Deus ou de alguma realidade cósmica, uma experiência interior e
uma expressão externa desse amadurecimento espiritual.
Orlo Strunk Jr., define maturidade religiosa como a organização dinâmica
dos fatores cognitivos-afetivos-conativos, que possui certas características de
profundidade e altitude – incluindo um sistema de crença altamente consciente,
articulado e purgado, por processos críticos, de desejos infantis, intensamente
adaptável e bastante vasto para encontrar significado positivo em todas as
vicissitudes da vida. A relação dinâmica entre o sistema de crença e os fatos
de experiência produzirá sentimentos de admiração e reverência, um senso de
unidade com o Todo, humildade, elação e liberdade; e, com grande consistência,
determinará o comportamento responsável do indivíduo, em todas as áreas de
reações pessoais e interpessoais, incluindo esferas como moralidade, amor,
trabalho, etc.
Partindo de quatro conceitos fundamentais da doutrina freudiana, a saber,
que o homem é basicamente um ser egocêntrico, que emoções irracionais são a
base de quase todo comportamento humano, que o homem tem uma forte tendência a
racionalizar seu comportamento e que as atitudes de adultos têm suas raízes nas
experiências da infância, Orlo Strunk Jr., concluiu que, para Freud, “qualquer religião que trata apenas de idéias
e conceitos intelectuais é fragmentária e, provavelmente, falsa”[36].
A crença freudiana de que a única esperança para o homem consiste sem sua
habilidade de sintetizar seus instintos, razão e consciência, implica em que
uma das características de maturidade religiosa seja sua capacidade de
encontrar a correta relação entre aquilo que é e aquilo que deve ser.
A posição de Erich Fromm é bem mais clara do que a de Freud ou a de Jung,
e a de Strunk, quanto à maturidade religiosa. Em sua vasta produção literária,
Fromm claramente defende a posição de que a maturidade é a realização dos
poderes racionais do homem, bem como a sua capacidade de amar e de realizar
trabalho produtivo.
Fromm define religião como “qualquer
sistema de pensamento e ação seguido por um grupo capaz de conferir ao
indivíduo uma linha de orientação e um objeto de devoção”[37].
Distingue ele entre religião humanista e religião autoritária. A primeira é
baseada na razão e, conseqüentemente, é amadurecida; a segunda é baseada nos
desejos infantis e, conseqüentemente, imatura. Em suas próprias palavras, é
assim que Fromm distingue a religião humanista da religião autoritária, a
religião secular, autoritária, segue o mesmo princípio. O Fuehrer ou adorado
“Pai do seu povo”, o Estado, a Raça ou o Vaterland Socialista tornam-se objeto
de devoção; a vida do indivíduo torna-se insignificante, e o valor do homem
consiste precisamente na negação do seu valor e força. Freqüentemente, a
religião autoritária postula um ideal tão abstrato e distante, que perde as
conexões com a vida real do povo, como este se apresenta. O bem-estar pessoal é
sacrificado a ideais, como, por exemplo, “a vida eterna” ou “o futuro da
espécie humana”; os fins justificam todos os meios e tornam-se símbolos, em
nome dos quais as elites religiosas ou seculares controlam os seus semelhantes.
A religião humanista, ao
contrário, está centralizada pela idéia do homem e das suas potencialidades. O
homem deve desenvolver a força da sua razão, para que possa entender a si
próprio, as suas relações com os seus semelhantes e o lugar que ocupa no
universo. Ele deve reconhecer a verdade, tanto no que se refere às suas
limitações, como às suas potencialidades. Cabe-lhe desenvolver a sua capacidade
afetiva, não apenas em relação ao próximo, como a si mesmo, e experimentar
solidariedade por todas as coisas vivas. Naturalmente, ele precisa de
princípios e normas para guia-lo nesse sentido: a experiência religiosa, nessa
espécie de religião, é a experiência de união como universo como o homem o
concebe e sente. O objetivo humano consiste em atingir a máxima força, e não
fraqueza; a virtude é a realização pessoal, e não a passividade da obediência.
A fé, na religião humanista, alicerça-se na certeza da convicção obtida através
das experiências intelectuais e emocionais, ao passo que na religião
autoritária o homem aceita as proposições porque acredita em quem as formulou.
Na religião autoritária, o humor predominante é de tristeza e culpa; na
religião humanista, o tom emocional prevalente é de alegria[38]
O outro conceito de Fromm, que se relaciona diretamente com a idéia de
maturidade religiosa, é sua teoria quanto a trabalho produtivo. Este conceito
muito se assemelha à idéia de “geratividade”, de que fala Erikson. A pessoa
produtiva é aquela vivamente interessada em transformar para melhor, por meio
de esforço constante, tudo aquilo que lhe vem às mãos. A pessoa religiosamente
amadurecida, portanto, seria aquela de profunda consagração espiritual e
perfeitamente cônscia de suas responsabilidades para consigo mesma e para com o
próximo. Em suas palavras, Fromm declara:
A pessoa verdadeiramente
religiosa, se segue a essência da idéia monoteísta, não pede coisa alguma, nada
espera obter de Deus; não ama a Deus como um filho ama seu pai ou sua mãe;
adquiriu a humildade de sentir suas limitações até o grau de saber que nada sabe
a respeito de Deus. Deus torna-se para ela um símbolo em que o homem, numa
etapa anterior de sua evolução, expressou a totalidade daquilo por que o homem
luta, o reino do mundo espiritual, do amor, da verdade, da justiça. Tem fé nos
princípios que ‘Deus’ representa; pensa verdade, vive amor e justiça e
considera a sua vida inteira como só valiosa enquanto lhe dá ocasião de
alcançar um sempre mais amplo desdobramento de seus poderes humanos – como a
única realidade que importa, com o único objetivo de preocupação última – e
acaba não falando a respeito de Deus, nem mesmo mencionando seu nome. Amar a
Deus, se tal pessoa fosse usar esta expressão, significaria, então, ansiar pelo
atingimento da plena capacidade de amar, pela realização daquilo que ‘Deus’ representa
em alguém.[39]
Finalmente, à semelhança de Otto, Fromm preconizou que a religião
amadurecida se caracteriza por um senso do maravilhoso no universo. A pessoa
genuinamente religiosa preocupa-se com as maravilhas e os problemas da vida e
do mundo. Além disso, a pessoa religiosa tem o senso de unidade com o universo.
É essa, aliás, uma das características da experiência mística. O homem sente-se
ligado não só ao seu semelhante, mas à própria vida e ao universo.
Strunk sintetiza o pensamento de Fromm a esse respeito, chegando às
seguintes conclusões:
A pessoa religiosamente amadurecida integrará as formas de religião que
salientam o raciocínio adulto e é livre das fantasias de onisciência e
onipotência, características da religião infantil.
Na sua concepção de Deus, a pessoa religiosamente amadurecida o verá como
símbolo dos poderes do próprio homem, e não como um símbolo externo de força e
poder.
A pessoa religiosamente amadurecida amará o seu próximo como a si mesma,
sendo este amor uma ativa preocupação pela vida e o desenvolvimento do objeto
amado.
A religião da pessoa religiosamente amadurecida dará ênfase à produtividade, e não à receptividade,
exploração, ganância ou transação comercial; isto é, a maior preocupação da
pessoa religiosamente amadurecida será a transformação de potencialidade em
realidades.
A pessoa religiosamente amadurecida manifestará profunda humildade,
perfeitamente cônscia de que nada pode saber da verdadeira natureza de Deus, e,
conseqüentemente, não deve julgar a religião de seu próximo.
A pessoa religiosamente amadurecida é aquela que é cheia do senso do
maravilhoso e de preocupação – faz perguntas sobre a existência e preocupa-se
com o significado último da vida.
Ao lado dessa preocupação, a pessoa religiosamente amadurecida tem o
profundo desejo de se tornar um com o universo; o desejo de se unir ao Todo.
Poderíamos multiplicar o número de autores que falam sobre a maturidade
religiosa, mas terminaremos essa excursão com as normas de avaliação da
maturidade religiosa apresentadas por Strunk no quadro que segue no Anexo II,
por onde traçamos nossos comentários em torno desse quadro.
O exame do quadro mostra que todos os autores parecem concordar com os
seguintes pontos:
A religião é amadurecida na proporção em que é purgada das características
de religião infantil. Stolz afirma, com justeza, que na personalidade
amadurecida religião não é mágica, mas visão,
imaginação, poder e cooperação com Deus. Por outro lado, a religião
imatura é ao mesmo tempo fuga da realidade e ópio que dá à sua vítima um falso
senso de segurança. Na religião amadurecida o homem terá independência de juízo
e de ação. Nela o homem se emancipa emocionalmente das tradições e da rigidez
da autoridade externa. Ao invés de obediência à letra da lei, a pessoa religiosamente
amadurecida tem uma atitude criativa baseada no espírito da lei. Ao invés de
regras inflexíveis, ela adotará princípios gerais aplicáveis a situações
concretas.
Maturidade religiosa implica na convicção da existência de um Ser Supremo
e de idéias básicas sobre a vida e o universo. Essa convicção dá suficiente
sentido à vida do homem e leva-o a um comportamento moral consistente com sua
filosofia de vida e suas crenças religiosas.
Finalmente, a maturidade religiosa caracteriza-se pela capacidade de amar
o próximo, de ser humilde, de ser criativo, de ajustar-se socialmente e de ser
consagrado aos objetivos supremos da vida como concebidos pelo indivíduo.
Assim como há a possibilidade de um ser humano atrofiar-se no processo do
seu desenvolvimento físico e mental, isto também pode acontecer com relação à
sua experiência religiosa. Alguns amadurecem e produzem frutos espirituais;
outros permanecem imaturos e grandemente estéreis.
Maturidade religiosa não pode ser
definida em separado da maturidade emocional do homem, se bem que tenha suas
características distintivas.
Dentre os numerosos autores que
direta ou indiretamente falaram sobre maturidade religiosa, salientamos os
seguintes:
Para Freud, a religião madura é
aquela capaz de sintetizar instintos, razão e consciência e de levar o homem a
uma compreensão adulta da realidade, livrando-o de desejos e dependência
infantis, tornando-o cônscio da diferença entre aquilo que é e aquilo que deve
ser.
Para Jung, a pessoa religiosamente
amadurecida é aquela que experimenta a verdade espiritual num nível tão
profundo que essa experiência, embora inefável, torna-se não só a fonte de
autoridade para a pessoa, ma o próprio leit Motiv de sua existência.
Para Erich Fromm, a religião
amadurecida é a do tipo humanista, que, por conceituação será livre de
fantasias infantis, caracterizada por profundo amor ao próximo, mística em sua
natureza mais profunda, humilde e cheia de simpatia para com o semelhante.
No dizer de William James, o
verdadeiro santo, que para ele significa a pessoa amadurecida, é aquele que
sente parte de um universo muito mais amplo do que seus mesquinhos interesses
pessoais ou, por outras palavras, é o indivíduo que possui uma consciência
cósmica. A religião amadurecida é aquela que dá ao homem o verdadeiro senso de
liberdade, ou, como disse Jesus Cristo: “E
conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”(João 8:32).
Para Viktor Frankl, a religião
amadurecida será aquela que dá ao indivíduo uma razão para viver, apesar da
tragédia pessoal ou dos infortúnios da existência. Será aquela religião capaz
de tornar o homem responsavelmente livre e de levá-lo a dedicar-se
integralmente a uma causa suprema que se constitui o centro de sua lealdade.
Finalmente, para Gordon Allport, a
maturidade religiosa apresenta seis características:
a.
A religião amadurecida é bem diferenciada através de um
processo consciente de autocrítica em que o indivíduo transforma em sua própria
a experiência religiosa meramente recebida de seu grupo social.
b.
A religião amadurecida é aquela que tem grande poder
transformador e diretor na vida do homem. O indivíduo religiosamente maduro é
dinâmico, sem ser fanático ou compulsivo em seu comportamento religioso.
c.
A religião amadurecida expressar-se-á através de frutos
no comportamento, isto é, ela produz uma condição de coerência entre o que o
homem crê e o que faz.
d.
A religião amadurecida é tolerante e pronta a
reconsiderar sua própria posição.
e.
A religião amadurecida tem função integradora e abrange
o contexto geral da vida.
f.
Finalmente, a religião amadurecida é de caráter
heurístico, isto é, será sempre uma busca da verdade integral.
IX Conclusão.
O Evangelho de Nosso Senhor Jesus
Cristo, surgiu em um mundo de muitos “deuses” e muitos “senhores” (1 Co. 8:5) e
entre gente muito “religiosa”. Isto ocorreu há mais de mil novecentos anos, e
ainda hoje encontramos muita gente religiosa e temos muitas religiões. O
Evangelho segue chamando os homens sejam eles religiosos ou não, a aceitar
humildemente a dádiva da redenção de Deus em Cristo Jesus.
Urge
no campo da antropologia uma argüição concernente a uma definição acerca da
religião, e, pelo fato de que a maioria das pessoas possuírem seus próprios
pensamentos sobre a mesma, quando tentamos uma definição nos encontramos
imediatamente com alguns problemas. Um dos manuais mais populares sobre as
religiões do mundo oferece em torno de vinte definições diferentes de religião,
sendo ainda estes exemplos representativos.
Até onde sabemos, o homem é a única
criatura neste universo que tem uma consciência religiosa. O homem não é
somente único em sua religiosidade, mas sim é universalmente religioso. Isto
não quer dizer necessariamente que cada indivíduo seja religioso, mas sim que
todas as pessoas tem uma religião, ou religiões. A arqueologia e a história nos
dizem que, até onde alcança o conhecimento sobre o homem primitivo encontramos
evidencias de sua religião. Podendo afirmar que a universalidade da consciência
religiosa do homem parece estar bem estabelecida. O homem parece ser uma
criatura incuravelmente religiosa.
O desenvolvimento religioso do
homem, como igualmente outros aspectos de sua cultura, caminha cada dia mais
para um complexo do religioso-mágico. Há muitas religiões e muitos substitutos
para a religião no mundo pós-moderno. Verdadeiramente parece que vivemos em um
tempo de insuperável fermento religioso na história humana.
Estranho como pode parecer, o
avivamento religioso, e o interesse pelas coisas religiosas, tem chegado a uma
época de secularismo estendido e um espírito irreligioso. Por volta do ano
1920, os missionários cristãos foram advertidos de que o rival maior do
cristianismo não eram as religiões não cristãs, mas “um mercado espírito
secularista e uma interpretação materialista da vida”.
Os que nos acompanharam até aqui
estão, provavelmente, desapontados por terem aprendido tão pouco a respeito da
Análise Antropológica quanto ao Fenômeno Religioso-Mágico e dos processos
presentes nos artigos sob os pontos de vistas do pesquisador na sua respectiva
área científica. Fizemos algumas generalizações, e em quase todos os capítulos
perguntas se levantaram mais numerosas que as respostas fornecidas. Esta
situação não exige desculpas, mas merece explicação. Todas as ciências passaram
em sua juventude por períodos semelhantes. E a Antropologia ainda é uma das
mais jovens. Até agora, a Antropologia nem mesmo conseguiu ordenar
sistematicamente seu material, nem desenvolver técnicas realmente eficientes para
estudá-lo. Suas primeiras tentativas para aplicar à cultura e à sociedade
quanto ao fenômeno religioso-mágico, as abordagens anteriormente desenvolvidas
nas ciências naturais provaram-se em grande parte abortivas, devido a serem de
ordem muito diferente os fenômenos de que trata.
Hoje, nossos pesquisadores das
ciências da religião estão em posição muito semelhante à dos gregos de
Alexandria em seus estudos da natureza. Chegamos a uma porta além da qual há um
mundo de conhecimentos que promete dar ao homem uma vida melhor que todas as
que ele já conheceu. Mas parece haver poucas probabilidades de podermos
transpor o limiar. Há sinais evidentes de que esta era de liberdade também está
sendo levada a termo, e mal se pode duvidar de que o estudo da cultura e o
fenônemo religioso-mágico será a primeira vítima da nova ordem. No estado
totalitário não há lugar para ele. Na realidade, o próprio interesse dos homens
por tais assuntos é uma crítica à ordem existente, um índice de que se duvida
de sua perfeição. A não ser que a história esteja errada, o cientista do fenômeno
religioso seguirá o caminho do filósofo grego. Mas, deixará, também, um
patrimônio de técnicas de pesquisa e problemas discernidos, mas não resolvidos;
uma nova fronteira, de onde os espíritos livres forçarão novamente a marcha
para o desconhecido. Quando essa época chegar, talvez depois de séculos de
trevas e de estagnação, os homens terão por nós a consideração que temos pelos
gregos.
Referências Bibliográficas:
MELLO, Luiz
Gonzaga de. “Antropologia Cultural – Iniciação, Teoria e Temas” – Editora
Vozes, 1982, Petrópolis, RJ, p. 526.
BARRETT, D. B. 1968. Schism and
Renewal in Africa . An Analysis of Six Thousand
Contemporary Religious Movements. Oxford, XX-363.
BERNARDI,
Bernardo “Uomo Cultura Società – Introduzione agli studi etno-antropologici”,
Franco Angeli Editore, Milão, 1974. 450 p.
LINTON, Ralph,
“O Homem – Uma introdução à Antropologia”, São Paulo, Martins Fontes, 2000, 470
p.
CATALAN,
Jean-François, “O Homem e sua Religião”, São Paulo, Paulinas, 1999, 163 p.
GEERTZ, Clifford, “The
Interpretation of Cultures” NY, EUA, 1973, Basic Books, 323 p.
E. Adamson
Hoebel e Everett L. Frost, “Antropologia Cultural e Social”, Cultrix, São
Paulo, 1976, 470 p.
BASTIDE, Roger,
“ Antropologia Aplicada”, São Paulo, Editora Perspectiva, 1979, 196p.
BIANCO, Bela
Feldman, “Antropologia das Sociedades Contemporâneas”, São Paulo, Global
Universitária, 1987, 402 p.
Série Ciências
Sociais, Fundação Getúlio Vargas, 1975, Rio de Janeiro, 100 p.
CLASTRES,P. M.
Garchet, A. Adler, J. Lizot, Paris, 1977, Edições 70.
HSU, Francis L.
K., “O Estudo das Civilizações Letradas”, E.P.U, 1974
PELTO, Pertti V.
“Iniciação ao Estudo da Antropologia”, 3ª Edição, 1975, Rio de Janeiro, Zahar
Editores, 144 p.
COPELAND, E. Luther. “El Cristianismo y Otras Religiones”, Casa Bautista
de Publicaciones, 1977,Buenos Aires, Argentina, 191 p.
ANEXOS
Anexos I
A Dinâmica magia/religião.





Anexo II
Características da Maturidade Religiosa
Cognitivas
–(Crenças)
|
Afetivas-
(Sentimentos)
|
Conativas
– (Ações)
|
Livre de
idéias infantis (Freud)
|
Experiência
de fatores religiosos inconscientes (Jung)
|
Viver de
acordo com os fatores religiosos do psiquismo. Amar o próximo. (Fromm).
|
Incluirá
emoção e intelecto, fatores conscientes e inconscientes (Freud).
|
Experiência
autoritária (Jung)
|
Produtividade
(Fromm)
|
Organizará
instintos, razão e consciência (Freud)
|
Experiência
inefável (Jung)
|
Continuidade
amigável com o Poder Ideal (James)
|
Terá
profundo respeito aos fatos, eventos e a outros indivíduos (Jung)
|
Vida
interior enriquecida (Jung)
|
Moral
consistente (Allport)
|
Consciência
dos fatores religiosos no psiquismo(Jung)
|
Admiração
e reverência (Fromm)
|
Amor à
vida (James)
|
Convicção
da existência de um Poder Ideal (James)
|
Senso de
participação de um universo mais amplo (James)
|
Dinâmica
(Allport)
|
Deus como
símbolo dos poderes do homem (Fromm)
|
Unidade
com o Todo (Fromm)
|
Dedicação
mesmo em face da incerteza (Allport)
|
Fé
crítica (Allport)
|
Elação e
liberdade (James)
|
Liberdade,
responsabilidade, consagração (Frankl)
|
Fé
articulada (Allport)
|
|
|
Fé
abrangente (Allport)
|
|
|
Dará
ênfase ao significado da vida (Frankl)
|
|
|
Adaptado de
Mature Religion, por Orlo Strunk Jr. (1965).
Anexo III
O
espírito e a alma,
Objetos
de investigação científica.
O espírito e a alma são objetos da
pesquisa científica da mesma maneira que qualquer outra coisa estrangeira ao
ser humano. A psicanálise goza de um direito particular para falar aqui em nome
da Weltanschauung científica, porque não pode ser acusada de ter negligenciado
o psíquico na imagem do mundo. sua contribuição à ciência consiste precisamente
na extensão da pesquisa ao campo psíquico. Sem essa psicologia, a ciência
certamente seria muito incompleta. Mas, se se inclui a investigação das funções
itelectuais e emocionais do homem (e dos animais) na ciência, ver-se-á que nada
muda na posição de conjunto que é a sua; pois disso não resulta quaisquer novas
fontes de saber nem novos métodos de pesquisa.
Sigmundo
Freud,
Nouvelles
Conférences d´introduction à la psychanalyse,
Nova
tradução feita por Rose-Marie Zeitlin, Paris, Gallimard,
Coll.
“Connaissance de l´ Inconscient”, 1984, pp. 212-213.
Anexo IV
A religião como fato psicológico
A religião é sem
contradito uma das manifestações mais antigas e mais gerais da alma humana. Por
conseguinte, é evidente que toda psicologia, preocupada com a estrutura
psicológica da personalidade humana terá, pelo menos, de reconhecer que a
religião não é unicamente um fenômeno social ou histórico, mas que constitui
também, para muitos seres humanos, uma questão pessoal.
Embora
eu tenha sido muitas vezes tratado de filósofo, eu sou um empírico e como tal
situo-me de um ponto de vista fenomenológico. Entretanto, não creio que esteja
a pecar contra os princípios do empirismo científico por fazer ocasionalmente
reflexões que ultrapassam os limites da simples acumulação de observações e sua
classificação.
Com
efeito ensino que sem reflexão integrante toda experiência é impossível, posto
que “a experiência” é um processo de assimiliação fora do qual não poderia ser
compreendida. Dessa constatação se deduz que é do ponto de vista das ciências
naturais, e não de um ponto de vista filosófico, que abordo os fatos
psicológicos. À medida que o fenômeno denominado religião engloba um aspecto
psicológico considerável, trato esse assunto de um ponto de vista puramente
empírico, limitando-me à observação dos fenômenos e abstendo-me de qualquer
consideração metafísica ou filosófica. Não que eu negue o valor de outras
maneiras de abordar ou considerar esses problemas, mas eu não poderia ter a
pretensão de utiliza-los corretamente (...).
Minha
intenção é a de propor pelo menos alguns enfoques sobre a maneira pela qual a
psicologia prática vem a confrontar-se com o problema religioso.
Carl gustav Jung, Psychologie et
religion,
Trad. Francesa, Paris , Buchet-Chastel/Corréa, 1958. pp. 13-15
[1] D. Morris, The Naked Ape.
[2] B.D. Paul, “Teaching Anthropology
in Schools of Public Health”, in D.G.Mandelbaum, G.W. Lasker, e E.M. Albert
(orgs.), The Teaching of Anthropology, p. 503.
[3] C. Kluckhohn, Mirror, for Man, p.
11.
[4] T. Dobzhansky, “Evolution: Organic
and Super-organic” (The Rockfeller Institute Review, vol. 1 nº 2, 1963), p. 1.
[5] A. L. Kroeber e C. Kluckhohn,
Culture: A Critical Review of Concepts and Definitions, com permissão de Papers
of the Peabody Museum of American Archaeology and Ethnology, Harvard
Universisty, vol. 47, 1952, p. 181.
[7] Mischa
TITIEV. Introdução à Antropologia Cultural, p. 193.
[8] Emile
DURKHEIM. Lê forme elementari della vita religiosa, livro I, p. 25s.
[9] Emile DURKHEIM. Op. Cit., p. 39.
[11] E. E. Evans-PRITCHARD. Op. Cit.,
p.37.
[12] E. E. Evans-PRITCHARD Op. Cit., p.
41.
[13] E. E. Evans-PRITCHARD.Op. cit., p.
41.
[14] Félix
KEESING. Antropologia Cultural, vol. II,p. 490.
[16] E. E. Evans-PRITCHARD. Op. Cit., p.
90
[17] Fustel
de COULANGES. A Cidade Antiga, vol. I, p. 54.
[18] E. E. Evans-PRITCHARD. Op. Cit.,
p.98/9.
[22] John
BEATTIE. Introdução à Antropologia Social, p. 248.
[23] Marcel MAUSS. Institución y
culto, p. 155.
[25] Arnold
VAN GENNEP. Os Ritos de Passagem, p. 33.
[26] A. P. ELKINS. The nature of
Australian Totemism, p. 159/6.
[27] Emile
DURKHEIM. Le forme elementari della vita religiosa, p. 111.
[28] John
BEATTIE. Introdução à Antropologia Social, p. 263.
[29] Sigmund
FREUD. Totem e Tabu, p. 172.
[30]
Bernardo BERNARDI. Introdução aos Estudos Etno-Antropológicos, p. 421/2.
[31] Franz BOAS. Kwakiutl Etnography, p.
133.
[32] Charles WAGLEY. Xamanismo Tapirapé,
p. 248.
[33] La Mystique et les
mystiques, sob a direção de André Ravier, Paris, Desclée de Brouwer, 1965, pp.
7-39 (principalmente pp. 13-15).
[34] La Mystique et les
mystiques, op. Cit., pp. 13-14.
[35] La Mystique et les
mystiques, op. cit.
[36] Orlo Strunk Jr., ”.Mature Religion: A Psychological
Study, New York ,
Abingdon Press (1965), p. 25-26.
[37] Erich
Fromm, Psicanálise e Religião (tradução de Iracy Doyle), Rio; Editora
Civilização Brasileira (1956), p. 21.
[38] Id. Ibid., págs. 33,34.
[39] Id. Ibid., págs. 99, 100.
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