A Religiosidade e sua Função Social
Desde os primórdios da humanidade, a religiosidade faz parte da essência
do homem, na busca constante da existência e vivência de Deus, através dos
mitos de criação do mundo (cosmogonias). A alma humana contém a atração pelo numinoso
(do latim numen, “deus”), porque ela é provocada pela revelação de um aspecto
do poder divino, na linguagem de Otto.
A alma humana possui o instinto religioso; surge assim o que chamamos de
religião, tendo se manifestado, ao longo da história, em todas as partes do
mundo, em circunstâncias múltiplas. A exemplo dos Dayak, de Bornéu (ilha
asiática), citado por Eliade (1992), bem como para outros povos primitivos, o
mito cosmogônico influencia os princípios que governam a existência cotidiana.
Em virtude desta complexidade, faz-se necessária o uso da palavra religiosidade
para definir esta tentativa de religação com o divino, que difere tanto em
sinônimos quanto em dogmas, a depender da religião em questão.
As religiões se constituem de sistemas simbólicos com significantes e significados
particulares, logo, portanto, do ponto de vista de um indivíduo religioso, caracteriza-se
como a afirmação subjetiva da proposta de que existe algo transcendental,
extra/empírico, maior, fundamental e mais poderoso do que a esfera que nos é
imediatamente acessível através do instrumentário sensorial humano.
Portanto, é um universo multidimensional, que se revela nas interfaces
da fé, através dos rituais, pela experiência religiosa, na constituição das
instituições e contribuição de um código próprio da ética que versará e refletirá
as condutas desses indivíduos.
Com efeito, caracterizando-se por um sistema de compreensão e interpretação
do mundo, caberá a esta responder às questões referentes à origem do universo,
pela interpretação cosmológica de encontrar o sentido para a vida, alimentar
esperanças para o futuro transcendente da vida atual, o ajustamento emocional,
a segurança cognitiva ao enfrentar problemas de dor e morte, sinalizar com a
possibilidade de resposta e compensação à variada gama de sofrimentos.
Vale ressaltar que estes sofrimentos são oriundos das mais diversas
causas, desde doenças, relações pessoais, relações sociais opressivas,
intervenções médicas e técnicas, regras de conduta, padrões éticos até
cataclismos naturais.
Segundo relatos dos Evangelhos, Jesus passou boa parte de sua vida pública
curando enfermos, Sacerdotes, xamãs e homens-medicina procuraram ao longo do
tempo aliviar os sofrimentos humanos através de orações, magia, ervas, emplastros
e aparelhos ortopédicos. Não podemos precisar a origem da secularização da
terapêutica, mas no início da Era Cristã, no âmbito do Império Romano, parece
que parte dos médicos já não tinha vínculos com organizações religiosas. Com a
queda do Império, houve um novo impulso em favor da religiosidade nesta esfera,
os cristãos associaram santos com certas doenças e os mosteiros especializaram
alguns monges para desempenhar o papel de terapeutas.
Há ainda, um aspecto muito importante no que diz respeito ao sistema religioso,
pois através de sua atividade política, pode-se legitimar e estabilizar um governo
ou estimular atitudes revolucionárias, visto que estão inseridas no contexto social,
uma vez que membros de uma comunidade religiosa compartilham a mesma cosmovisão,
seguem valores comuns e em grupos praticam sua fé. No pensamento marxista a
crítica da religião é um elemento de grande importância, pois a religião é ideologia
um modelo geral para a explicação do mundo, e sua funcionalidade para a sociedade
está em justificar a realidade de opressão. Marx (1989) afirma que o homem cria
a religião e não o inverso. Analisando a revolução na França em 1848 e o golpe
de Estado do sobrinho de Napoleão, escreveu:
A tradição de
todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E
justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em
criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise
revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxílio os espíritos do
passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens,
a fim de apresentar-se nessa linguagem emprestada. (MARX,1989)
A religião exerce uma profunda influência sobre a vida e, por
conseguinte, opera as mudanças sociais. Weber quis provar que as concepções
religiosas são um fator determinante da conduta econômica e, em consequência,
uma das causas das transformações econômicas das sociedades (ARON, 1999).
A religião é definida por Durkheim (1989, p. 79) como “um sistema de
crenças e práticas em relação ao sagrado, que unem em uma mesma comunidade
moral todos os que a ela aderem.” Assim sendo, só pode haver moral se a
sociedade possuir um valor superior a de seus membros, um ato só será moral se
tiver por objeto algo que não o seu autor. Deus e a sociedade, portanto, têm o
mesmo significado, pois a religião é adoração da sociedade transfigurada. A
religião tem, assim, a função de agregar os indivíduos à sociedade, servindo
enquanto um instrumento de controle social, de manutenção da ordem, funcionando
como um código moral, um modelo a ser seguido por seus adeptos, dando ênfase,
enquanto valor agregado, à regularidade para a sociedade, possibilitando uma
reflexão do homem para além de si mesmo. Existir, para ele é existir
socialmente e, portanto, sob uma ordenação determinada, pois os indivíduos buscam
afetivamente na religião a sensação de sair de si, pela imersão no coletivo,
através do contato com algo que tem maior importância que eles próprios. É a
experiência de transcender que normatiza a vida em conjunto, através do
nivelamento, ou seja, todos são iguais, comungam de uma mesma comunidade moral
e compartilham a ideia de que a vida social é possível. Há ainda um fator
preponderante para isto: a presença da moralidade como ponto fundamental em sua
teoria como um princípio capaz de conferir estabilidade e continuidade social.
Um indivíduo sozinho não necessita de uma moralidade. Para se socializar, no
entanto, há uma moral coletiva à qual o indivíduo tende a se submeter, não
importando qual seja a sua moral individual.
Sendo assim, a coletividade deve incitar um aprimoramento da moral,
pois, socialmente bem difundida, a internalização da moral prescindiria de
entidades regulamentadoras, como o Estado ou a Igreja, ainda que política e
religião permaneçam, na medida em que funcionam, como geradoras de moral.
Funcionando pelo princípio da razão orientado para o conhecimento, a
ciência não tem como cumprir o papel de conferir regularidade, como a religião,
através das refeições morais cotidianas por ela ofertadas. Diante da ciência, a
religião perde seu papel de atribuição de origem, mas assim permanece, já que
se constitui como postulante moral e depositória de afetos, segundo Durkheim
(1989), estes são importantes instrumentos de impedimento de graves conflitos
sociais.
Compreender a religião sob o prisma da representação de um grupo, de uma
classe social ou de uma sociedade inteira, é considerar suas expressões por
meio de seus elementos sociológicos, histórica e devidamente contextualizados,
assim como incorrer no equívoco de explicá-las por si mesmas sem analisar o
contexto onde estas se constituem.
Contudo, para uma melhor definição sociológica do que seria um
comportamento religioso, deverá ser considerada sua dimensão simbólica em
relação aos indivíduos e sua manifestação nos planos individuais e coletivos.
Contava a lenda que o rei da Frígia morreu sem deixar herdeiro e que, ao
ser consultado, o oráculo anunciou que o próximo rei chegaria à cidade num
carro de bois. A profecia foi cumprida por um camponês, de nome Górdio, que foi
coroado.
Este para não esquecer seu passado humilde colocou a carroça, com a qual
ganhou a coroa, no templo de Zeus, amarrando-a com um nó a uma coluna, nó este impossível
de desatar. Górdio reinou por muito tempo, e, quando morreu, seu filho Midas
assumiu o trono, que por sua vez expandiu o império, porém, morrendo sem deixar
herdeiros. Novamente se faz necessária a intervenção do oráculo, profetizando
que aquele que desatasse o nó de Górdio dominaria toda a Ásia Menor.
Quinhentos anos se passaram sem que ninguém realizasse tal façanha, até
que um jovem de nome Alexandre (conhecido mais tarde como: o Grande), ao passar
pela Frígia ouviu a lenda e, intrigado com a questão, foi até o templo de Zeus
observar o feito de Górdio. Após muito analisar, desembainhou sua espada e
cortou-o, tornando-se senhor de toda a Ásia Menor poucos anos depois (BULFINCH,
2000).
Para novos desafios são necessárias novas soluções; neste caso, o
entendimento acerca das religiões.
Analisar a religião, não somente como comunidade religiosa, mística ou
de fé, mas como instituição social, permite compreendê-la como um mecanismo
social que programa o comportamento humano de forma especializada. A função da
instituição é fundamentalmente prática, pois programa o comportamento por meio
da persuasão e reforço das crenças, e conduz o indivíduo a reproduzir
comportamentos segundo as regras da instituição, identificando-a com a própria
verdade.
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