26 de fev. de 2021

FEITIÇARIA, MAGIA E O SEU UNIVERSO

Quando se trata da história da feitiçaria e se recorre a distintas sociedades ou coletividades, faz-se necessária a crítica dos vocábulos e conceitos no sentido de evitar confusão entre os sortilégios em geral – magia, bruxaria, feitiçaria – e sua aplicação. 
É certo que uma interpretação histórica deve rejeitar toda atomização e formalização de noções, combatendo explicações particularizantes ou demasiado gerais, para considerá-las em situação de estruturas mentais e interdependência cultural em que atua o “mental coletivo”(NOGUEIRA, 1991). Separações radicais podem tornar-se perigosas, na medida em que os rituais religiosos contêm igualmente ingredientes mágicos.
A bem do rigor histórico é preciso que se diga que não existe “uma magia”, “uma bruxaria”, “uma feitiçaria”, ou outras particulares manifestações das práticas mágicas.
Depois da extraordinária renovação do pensamento científico que caracterizou a segunda metade do século XIX, e da longa maturação epistemológica decorrente, muitos significados alteraram-se. Para compreender os atos mágicos, algumas distinções básicas são necessárias, ainda que sem nenhuma pretensão de validade absoluta, pois existirão tantas práticas quantos forem os sistemas culturais e de acordo com as diversas singularidades do mental coletivo. 
Além disso, novos caminhos apresentam-se ao historiador contemporâneo, que privilegia os estudos dos simbolismos, das representações mentais, da magia, do mito e do parentesco, o que o leva a ver com precaução os sistemas gerais de classificação ou as sínteses antropológicas, antes de qualquer retomada conceitual.
A linguagem, mola mestra da cultura, é o elemento básico para a investigação da episteme de um determinado grupo, localizado no tempo e no espaço. Ela constitui-se em meio fundamental para a percepção psico-histórica, conforme já apontara Lucien Febvre (o historiador das mentalidades). Febvre define a linguagem escrita como o principal modo de expressão do campo percepcional de uma comunidade.(FEBVRE, 1953,p.211) 
A literatura captará essa linguagem nos documentos e papéis, vestígios (traces) que fixam a ortodoxia cristã e nos quais podem ser encontradas as pegadas do universo mágico. Lembranças de lugares- comuns e todo um manancial das mais diversas manifestações culturais, seus restos e tempos reunidos em coerências mentais, constituem o “mental coletivo” de que se fala, no qual devem ser buscadas as continuidades, as perdas, as rupturas, enfim, a reprodução mental das sociedades.
Embora apareçam como práticas interpenetradas e, em certo sentido, confundidas, resta tentar esclarecer as especificidades das personagens ligadas às diferentes práticas mágicas, visando maior adequação à realidade histórica no Ocidente cristão. Bruxos, feiticeiros, magos propriamente ditos e padres com função mágica, entre outras distinções que dificultam a compreensão, estão entre tantos nomes existentes para identificar as profissões ocultas. 
Mesmo que, desde a Bíblia, os textos antigos falem em Cam, o filho maldito de Noé, fundador de uma raça de mágicos idólatras, a nítida distinção entre as práticas mágicas não é encontrada em nenhum manual de feitiçaria. São registradas apenas nuances nos livros dos teólogos, que fazem a diferença superficial entre “magia branca” ou “negra”, um saber “um pouco mau” ou um saber “muito mau". 
No Brasil, a umbanda é considerada a “magia branca”; a “magia negra”, praticada com maus propósitos é ainda denominada, dependendo da circunstância, bruxaria (tida como sinônimo de feitiço, feitiçaria, sortilégio) ou necromancia ou nigromancia (adivinhação pela invocação dos espíritos). Já a “magia simpática” é a que pretende ter ação sobre pessoa ou objeto distante, do qual se detém uma parte. (Novo Aurélio, 1999, p. 1254.) 
De origem divina – “só Deus ensina os grandes segredos” –, a magia não é forçosamente boa. Há registros de invocações terríveis, sulfurosas e até mortais, logo seu emprego ser quase sempre negativo ou discutível. Na verdade, a magia, sobretudo em sua forma popular, nunca é completamente branca, pois fazer o bem a alguns por meio de determinados métodos pode, em contrapartida, significar fazer o mal a outros... Também não é completamente negra, pois se fosse francamente diabólica ou assim se apresentasse, não teria reunido padres, adeptos de uma pequena mágica/feitiçaria inocente, à qual se convertiam para fazer o bem. 
É interessante salientar que, ao pronunciar alguns encantamentos para vencer a esterilidade feminina ou curar pequenos problemas, esses religiosos, movidos por bons propósitos, redobravam os sinais da cruz com o intuito de reforçar a fé.
Embora obscura ao designar o pior e o melhor, a palavra magia, quando empregada nos livros eruditos pelos autores cristãos da Idade Média, referia conhecimentos superiores que possibilitavam conhecer as grandes leis do universo ou a cura pelas plantas (magia naturalis). A menos nobre, a pequena magia de não-mestres (em francês sorcellerie), defendida pela Igreja, utilizava o saber e previa o futuro com fins “pouco elevados”. 
Doutrina dos magos para o dicionário, a magia é considerada a arte ou ciência oculta para produzir – por meio de atos, palavras e por interferência de espíritos, gênios e demônios – efeitos e fenômenos extraordinários, contrários às leis naturais. 
Na antropologia, designa o conjunto de saberes, crenças e práticas, relativamente institucionalizados dentro de um grupo social, que respondem à necessidade de manipular certas forças impessoais ou indecifráveis, manifestas na natureza, na sociedade ou nos indivíduos. Os gregos distinguiam três grandes categorias mágicas em sua origem: o taumaturgo (de thaumatourgós), curandeiro que fazia milagres, intérprete dos sonhos, enviado pelos deuses; o goès (que vem de lamentações, imprecações), também chamado mestre do fogo e do voo mágico, altamente suspeito por manipular a ilusão e praticar uma espécie de magia com a qual evocava os espíritos malignos. Técnico do êxtase, de quem Cassandra (profetisa detentora do “êxtase e do entusiasmo”) é a encarnação feminina, o goès era um inspirado, primo do misterioso xamã oriental. Por último, abaixo nessa hierarquia, o pharmakos, apoticário dos filtros, das drogas e dos venenos. BECHTEL, 1997, em capítulo intitulado “L’éternel maléfice”, p. 13-54.
Palavra de origem iraniana, incorporada pelo grego (mageia), a magia era utilizada para exprimir uma forma especial de relação com o sobrenatural. Em seu livro La sorcellerie, Jean Palou, um dos pioneiros a estudar o assunto na contemporaneidade, define a magia como a arte de comandar as forças do mal. (PALOU, 1995,p.8-17) 
A feitiçaria, a de tentar comandá-las. Iniciado nos grandes mistérios, além de mestre o mago era considerado um homem de ciência, enquanto o feiticeiro, um aprendiz das aldeias, conhecedor apenas dos pequenos mistérios. Em consequência, a magia aparece em muitas obras de referência como arte ou pré-ciência, entre as formulações avançadas. No mago haveria conhecimento real; no feiticeiro, vulgarização.
Entretanto, se o mágico ou mago arriscava apenas a alma aos olhos dos crentes, protegido que era pelos grandes que o consultavam e em cuja corte vivia, o feiticeiro arriscava a alma e a vida, pois era sobre ele que se acumulavam ódios e invejas dos irmãos de miséria. Esta concepção de Palou antecipa em trinta anos os conceitos de Guy Bechtel (1997/2000), para quem ninguém define exatamente onde termina a magia ou começa a feitiçaria. 
Ao confrontar o feiticeiro com o mágico, esse historiador reforça em muitos aspectos a interpretação de Palou, acrescentando, porém, ao feiticeiro, a função de subalterno, imitador diante de seu modelo, um algebrista face ao médico, um empírico frente ao cientista. Sendo mestre, o mágico é iniciado nos grandes mistérios. Nesta medida, a magia será a ciência dos que sabem e a feitiçaria a aproximação dos que gostariam de saber. (BECHTEL, 1997,p.50) 
Talvez esteja aqui a distinção capital feita por esses estudiosos, sem esquecer, contudo, que a magia era para ambos uma concepção de mundo, uma visão esclarecida, extra lúcida, ao considerarem o universo suscetível de modificações por outros meios que não os materiais. Ao distinguir a magia antiga da que se tornará diabólica, é importante observar que nem o mago, nem a feiticeira eram inicialmente serviçais do Diabo, apenas comandavam os espíritos. A magia dominadora dos primeiros séculos da era cristã apaga-se cada vez mais ante a feitiçaria vulgar encontrada nos bairros mais pobres. As superstições medíocres ascendem das classes inferiores às superiores; os filtros, as drogas, os preparados e as poções mágicas tomam cada vez maior espaço nos níveis mais elevados da sociedade. 
Nessa evolução, uma figura estereotipada anuncia a feiticeira medieval, a estrige (strige, stix, stria, striga), mulher que voava à noite para frequentar reuniões, desencadear ventos, tempestades e fabricar unguentos e venenos. Do magus passa-se ao maleficus (feiticeiro) e de modo cada vez mais célere à maléfica (feiticeira).

REFERÊNCIAS

BECHTEL, G. La sorcière et l’Occident. Paris: Plon, 1997.
BECHTEL, G. Les quatre femmes de dieu: la putain, la sorcière, la sainte et la Bécassine. Paris: Plon, 2000.
ELIADE, M. Tratado de história das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
FEBVRE, L. Combats pour la histoire. Paris: Armand Colin, 1953.
GABORIT, L. As feiticeiras. Dicionário de mitos literários. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1997.
NOGUEIRA, C. R. O Diabo no imaginário cristão. São Paulo: Ática, 1986.
NOGUEIRA, C. R. Bruxaria e história: as práticas mágicas no Ocidente Cristão. São Paulo: Ática, 1991.
PALOU, J. La sorcellerie. Paris: PUF, 1995.
PALOU, J. La sorcière et l’Occident. 1997.
SCLIAR, M. Mito ou verdade? Zero Hora, 30 set. 2000. Caderno Vida, p. 2.
SOUZA, L. M. e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

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