3 de fev. de 2021
NEGOCIAÇÃO COGNITIVA x NEGOCIAÇÃO PRIMAL
A busca pela proficiência em negociação levanta a questão sobre o perfil do negociador ideal. No contexto atual, negociadores eficazes são aqueles que enfatizam tanto os ganhos, quanto a preservação das relações interpessoais. Mas o que diferencia a negociação onde prevalece a ênfase nos resultados, daquela onde há valorização dos ganhos mútuos e do relacionamento?
No que diz respeito ao comportamento do negociador em relação ao objeto, há dois tipos de negociação: primal e cognitiva. No que tange ao dilema da escolha entre ganhos e relacionamento, “o ser humano, em decorrência da sua herança evolutiva, ao se sentir desafiado na obtenção dos seus interesses e necessidades, tende a agir com o emprego das emoções, o que causa interferência na discussão das questões substantivas” (FERREIRA, 2008, p. 25). Lembrando que as questões substantivas são a razão de ser da negociação, como, por exemplo, um contrato de trabalho, definição de um piso salarial, uma divisão de tarefas, etc.
A negociação de modalidade primal é aquela onde ocorre o predomínio das emoções e o negociador acredita ser impossível a conquista de tanto as questões substantivas quanto as questões substantivas, opta pela luta; ao se decidir pela preservação do relacionamento, assume a fuga ou esquiva” (FERREIRA, 2008, p. 25).
Em uma negociação, ambas as posturas podem ser nocivas. No caso da luta, ocorre uma ênfase no exercício do poder e na imposição das vontades. Nesse caso, a emoção predominante é a raiva, que fere sentimentos e destrói o relacionamento. Assim, o outro negociador é visto como o rival que precisa ser derrotado.
Diante do dilema exposto, é provável que o negociador primal opte pela fuga ou esquiva, que enfatiza o relacionamento. A emoção dominante é o medo, onde o negociador abdica de seus valores e abusa das concessões para atender aos desejos do outro. Entretanto, a falta de assertividade na defesa dos seus direitos poderá levar o negociador a um sentimento de frustração. A falsa sensação de resolução, a longo prazo, causa danos ao relacionamento (FERREIRA, 2008, p. 26).
Dessa forma, em oposição à negociação primal, surge a negociação cognitiva, quando há empenho tanto na conquista de ganhos, quanto na manutenção do relacionamento. Nela, ocorre o predomínio da racionalidade, com exposição objetiva dos próprios interesses (assertividade) e respeito ao posicionamento e necessidades do outro (empatia).
Para ilustrar, observe abaixo uma mesma situação descrita de duas formas diferentes:
a) Durante a reunião de trabalho, o chefe de Paulo comunicou que ele estaria no plantão de vendas do sábado. Paulo deu um soco na mesa e disse, em voz alta, o quanto aquilo era injusto, porque ele já tinha se programado para ir ao aniversário da filha. Ele questionou por que ele não designava o Mário, que era o seu “queridinho”.
b) Durante a reunião de trabalho, o chefe de Paulo comunicou que ele estaria no plantão de vendas do sábado. Paulo pediu a palavra e perguntou polidamente se o chefe poderia designar outra pessoa, porque era aniversário da filha dele, que ele não via desde o início do ano, pois era separado da mulher. No entanto, disse que, se o chefe não conseguisse um substituto, que poderia contar com ele.
Analise as situações apresentadas e você perceberá que é fácil apontar em qual delas o funcionário soube expor seu ponto de vista de forma racional, com assertividade e despertando a empatia do chefe. O aumento da racionalidade e o controle das emoções são resultado do desenvolvimento do córtex pré-frontal no cérebro humano; fruto do milenar processo de evolução da espécie. É graças a essa estrutura que se desenvolveu a capacidade de analisar fatos, compreender processos e antecipar as consequências das decisões (FERREIRA, 2008, p. 35).
A negociação cognitiva está fundamentada em quatro forças motivacionais, oriundas do processo de evolução humana. Os impulsos de aquisição e defesa estão relacionados à obtenção e manutenção de bens e interesses. Já o estímulo pertinente à formação de vínculos, está ligado aos relacionamentos, enquanto o impulso de aprender é conectado à motivação pelo conhecimento. Desses quatro estímulos básicos, os dois últimos têm destaque maior na negociação cognitiva (FERREIRA, 2008, p. 36).
Assim, é pelo acúmulo de conhecimentos que o negociador, de maneira racional, consegue superar os conflitos existentes em torno do objeto e assegurar ganhos sem perder de vista a manutenção do relacionamento. É o despertar do ato de convencimento, no sentido de “vencer com” o outro, numa relação de co-participação no alcance dos resultados.
Diante de tudo que vimos até agora, fica a pergunta: mas afinal, quais são os caminhos para o desenvolvimento do negociador cognitivo? Vamos buscar auxílio na literatura? Podemos recorrer à figura de Sherlock Holmes, icônico detetive particular da obra de Sir Arthur Conan Doyle. O eterno parceiro de aventuras do Dr. Watson valorizava a ideia do “trabalhador de talento”, que preenche seu cérebro apenas com as ferramentas que vão ajudá-lo no seu ofício.
O brilhante detetive declarou que “o cérebro do homem é originalmente como um pequeno sótão vazio, que temos que abastecer com a mobília que escolhemos. Um tolo pega todo e qualquer traste velho que encontra pelo caminho, de modo que o conhecimento que poderia lhe ser útil fica de fora por falta de espaço [...] mas o trabalhador de talento é muito cuidadoso a respeito do que coloca no seu sótão-cérebro” (DOYLE, 1998, p. 19).
Portanto, a trajetória para a formação do negociador cognitivo, ou negociador de talento (uma pequena apropriação da ideia original de Sherlock Holmes) passa pela busca e apreensão de conhecimentos que irão pavimentar o aprimoramento da sua competência negocial.
Nesse panorama, duas fontes apresentam grande relevância: as teorias comportamentais oriundas da Psicologia, e as inteligências múltiplas de Howard Gardner, provenientes dos avanços da Neuro ciência nos anos 1990. A primeira por oportunizar ao negociador o domínio consciente dos aspectos comportamentais expressos ao longo do percurso negocial; e a segunda por possibilitar a mobilização das inteligências que serão úteis em uma negociação. O acúmulo desses saberes, somado ao pleno conhecimento das questões substantivas da negociação, poderão conduzir o profissional ao ápice do potencial efetivo no ato de negociar.
Para entender melhor os perfis de comportamento que surgem durante uma negociação, vamos apresentar uma matriz de estilos interpessoais de comportamento. De modo geral, os seres humanos são dotados, em maior ou menor grau, de dois impulsos fundamentais, o desejo de controlar o outro e o desejo de autocontrole (PESSOA, 2009, p. 118). À medida que esses desejos combinados aumentam ou diminuem ao longo da negociação, isso vai determinar a forma do comportamento, se manifestando em quatro estilos possíveis:
- Analítico
- Controlador
- Expressivo
- Sociável
Se o desejo de controle sobre o outro é baixo, mas acompanhado de uma necessidade maior de autocontrole, tem-se o estilo analítico. Quando há um forte desejo de controle sobre o outro, somado a um forte desejo de autocontrole, prevalece o perfil controlador. Se o desejo de controle sobre o outro é forte, mas o autocontrole é fraco, surge o perfil expressivo. Por fim, se tanto o controle sobre o outro quanto o autocontrole aparecem em baixa escala, chega-se ao perfil sociável.
O analítico é aquele que adora informações e detalhes, cumpre o que promete, mas é cauteloso, busca evidências por escrito e trabalha sozinho, não costuma dividir informações e sua tomada de decisão é lenta. O sujeito com perfil predominantemente analítico é aquele colega de trabalho apegado a normas e dados, às vezes um pouco burocrático. No entanto, é o parceiro ideal para elaboração de projetos ou relatórios.
O perfil controlador é expresso por quem prefere trabalhar rápido e sozinho, é orientado para resultados e não aceita falhas nem explicações, fala o que pensa, mas tem dificuldade para lidar com as diferenças, está sempre em busca de poder e controle. Justamente por esse motivo, são os controladores que geralmente chegam aos cargos de chefia nas empresas. Para se dar bem com um chefe controlador, é preciso deixar claro que você entende que é ele quem manda.
O estilo expressivo se caracteriza por pessoas que necessitam ser reconhecidos, não aceitam críticas e costumam rejeitar análises detalhadas, são impulsivos e suas decisões são imediatas. No entanto, são orientados para ideias e naturalmente criativos, além de não ter dificuldade em compartilhar informações. O profissional com este perfil não é alguém que você conseguirá convocar para trabalhos meticulosos, que envolvam análise de documentos, por exemplo. É melhor designá-los para tarefas que exijam criatividade e interatividade, como a organização de um evento.
E o perfil sociável é aquele que busca aceitação do grupo, é amigo de todos e é orientado para pessoas, trabalha bem em equipe e tem dificuldade em dizer não, suas decisões costumam ser mais demoradas. É o individuo ideal para situações que requerem um toque de diplomacia.
Cada perfil tem pontos fortes e fracos a serem considerados. A Figura 4 mostra um comparativo entre os perfis descritos. Esse conhecimento permite ao negociador de talento traçar estratégias para lidar com esses diferentes estilos em uma negociação.
De toda forma, cabe um alerta: nós, seres humanos, somos naturalmente complexos e não podemos ser reduzidos a personagens. Todo mundo possui, em maior ou menor medida, as características de todos os estilos apresentados. O que ocorre é que há uma tendência recorrente a repetirmos os comportamentos que funcionaram no passado. É a chamada zona de conforto (PESSOA, 2009, p. 121). O diferencial do negociador de talento é superar sua própria zona de conforto e adotar conscientemente os comportamentos mais adequados para cada situação negocial.
Imagine que você foi convocado a demonstrar os resultados de um projeto em que participou para o dono de uma empresa, futuro cliente em potencial do escritório que você representa. Para isso, você elaborou uma apresentação com muitas tabelas e gráficos, a fim de impressionar e conquistar o cliente. No entanto, chegando à reunião, você provoca um rápido momento de quebra-gelo para conhecer melhor o empresário. Nisso, você nota que ele tem um perfil expressivo e poderá não se impressionar com o excesso de dados, pelo contrário, pode até se entediar. Rapidamente, você muda sua estratégia, colocando os gráficos em segundo plano e focando sua apresentação numa performance mais eloquente e descontraída.
Esse é o papel do negociador de talento: conhecer os diferentes perfis de comportamento e adaptar sua atuação conforme as demandas de cada situação. Para isso, vamos aprender porque é imprescindível conhecer a função das inteligências múltiplas na formação desse negociador.
Saindo dos aspectos comportamentais, a segunda grande fonte de conhecimento para o negociador de talento envolve as inteligências múltiplas desenhadas por Howard Gardner (1994).
Para este brilhante psicólogo, a inteligência humana não é uma força única. Na verdade, as pessoas possuem diversas potências intelectuais, que utilizam diferentes áreas do cérebro e se desenvolvem de maneira diferenciada.
Essa seria a explicação dos diferentes níveis de desenvolvimento intelectual nas mais variadas áreas. Esse seria o porquê, por exemplo, de haver indivíduos tão habilidosos na música, enquanto apresentam deficiência em matemática, sendo que o oposto disso também seria verdadeiro. Inicialmente, foram identificados sete tipos de inteligência:
• Inteligência linguística
• Inteligência musical
• Inteligência lógico-matemática
• Inteligência espacial
• Inteligência corporal-cinestésica
• Inteligência pessoal, que se subdivide em:
- Inteligência intrapessoal
- Inteligência interpessoal
Para nosso estudo sobre negociação, num primeiro momento, a inteligência musical e a espacial parecem fora do contexto. Entretanto, não está descartada a possibilidade futura de se encontrar emprego para essas inteligências em situações negociais. Sendo assim, vamos analisar como as demais inteligências podem auxiliar o ofício do negociador.
A inteligência linguística está relacionada à capacidade de comunicação e ao aspecto retórico da linguagem. Por isso, tem influência no poder de argumentação do negociador. O potencial mnemônico está ligado à memória, elemento vital para se lembrar das informações pertinentes ao negócio. A explicação dos interesses e aspirações também é importante, bem como a meta-
linguagem, que se refere à maneira como se usa a própria linguagem. Quem, por exemplo, nunca passou por uma situação onde um simples e-mail foi fonte de muita discórdia? Provavelmente, o mau uso da linguagem escrita foi o causador do problema.
A inteligência lógico-matemática é vital na compreensão das questões substantivas da negociação, bem como no entendimento das implicações dos resultados. A identificação de padrões e a análise objetiva auxiliam na diminuição de riscos na tomada de decisões. Saber lidar com valores, fazer projeções em planilhas eletrônicas e extrair informações úteis dos números pode ser o diferencial em uma reunião. Pode lhe dar argumentos fortes ao defender decisões que você tomou ou precisa tomar.
A inteligência corporal-cinestésica tem papel fundamental, pois pesquisas indicam que 60% a 80% da comunicação em uma mesa de negócios é feita através da linguagem corporal (PEASE,2005, p. 18). Daí a importância da análise de comportamentos pela expressão corporal. O negociador deve ser capaz de identificar possíveis contradições. Se o seu chefe está de braços cruzados ou uma mão sobre a boca no momento em que você negocia um aumento, é sinal de que provavelmente você não vai obter êxito. É claro que todo cuidado é pouco, a fim de evitar generalizações.
A intenção é que, além de identificar as intenções do outro, o negociador possa desenvolver o uso consciente da própria expressão corporal. Só para ilustrar, quando estiver defendendo suas opiniões em uma reunião, experimente usar as mãos espalmadas para cima. Esse gesto é interpretado inconscientemente como um sinal universal de entrega ou de súplica, que pode aumentar as chances de convencer as pessoas e trazê-las para o seu lado (PEASE, 2005, p. 37).
Sobre a inteligência intrapessoal, pesam o autoconhecimento, a identificação das próprias emoções, qualidades, conhecimentos e limitações. Isso permite a escolha da melhor conduta e a avaliação prévia das consequências dos próprios atos. Essa é uma inteligência difícil de desenvolver, pois requer momentos de reflexão e muita sinceridade consigo mesmo. Isso é complicado, por que nossa tendência natural é achar que estamos sempre com a razão. Recomendo que relembre situações de conflito em que esteve envolvido e julgue de forma franca seus erros e acertos. Se Formos sinceros, veremos que muitas vezes cometemos injustiças, mas nunca é tarde para pedir desculpas e reatar relações prejudicadas por nossos atos.
A inteligência interpessoal está ligada à interpretação das intenções do outro, à expressão da empatia, a obtenção de ganhos e manutenção do relacionamento. Além disso, é vital no reconhecimento e respeito à diversidade cultural. É preciso se questionar constantemente: como estou me relacionando com o outro? Estou impondo meu ponto de vista à força? Será que estou discriminando pessoas por causa da aparência ou forma de se vestirem? Estou construindo uma rede de relações com pessoas que vieram para somar na minha vida?
Buscar a colaboração do outro pelo convencimento, ao contrário da imposição da vontade, “é uma expressão efetiva e sofisticada da inteligência interpessoal, que deve ser antecedida pelo conhecimento acurado de si próprio, com o emprego da inteligência intrapessoal” (FERREIRA, 2008, p. 36).
Com base nisso, ganha vulto o lema “nosce te ipsum” (em Latim: “conhece-te a ti mesmo”), máxima do oráculo de Delfos, que serve de alerta àqueles que almejam grandes conquistas, mas desconhecem os próprios limites e virtudes.
Diante de tudo que foi discutido, acredito que podemos vislumbrar a existência de uma inteligência relacionada especificamente à negociação. Uma inteligência se constitui em “um conjunto de habilidades de resolução de problemas – capacitando o indivíduo a resolver problemas ou dificuldades genuínos que ele encontra e, quando adequado, a criar um produto eficaz [...], por meio disso propiciando o lastro para a aquisição de conhecimento novo” (GARDNER, 1994, p. 46).
As características ora citadas estão intimamente relacionadas ao universo da negociação, principalmente no que foi anteriormente refletido, quanto ao perfil de provedor de soluções atribuí do ao negociador. Além disso, podemos recorrer aos critérios para definição de uma inteligência(GARDNER, 1994, p. 48):
- Conjunto de operações identificáveis: quando a inteligência apresenta mecanismos de processamento de informações, que lidam com tipos específicos de inputs.
- História de desenvolvimento distinto aliada a desempenhos proficientes de expert quando é possível identificar diferentes níveis de perícia no desenvolvimento da inteligência, passando do nível de iniciante para os níveis de competência mais elevados. Nesse estágio, podem ser reconhecidos em indivíduos de talento incomum, ou que receberam formas especiais de treinamento.
- Suscetibilidade à codificação em um sistema simbólico: ainda que uma inteligência possa existir sem seu próprio sistema de símbolos, é provável que uma de suas características principais seja a incorporação de um sistema simbólico.
Pelo que conseguimos visualizar, uma competência intelectual específica para lidar com situações negociais envolve todos os aspectos listados: o processamento de informações, um histórico de desenvolvimento com profissionais altamente gabaritados, seja por talento inato, seja por treinamento especial e a incorporação de sistemas simbólicos.
Portanto, quando o negociador de talento exercita suas inteligências múltiplas de forma consciente para alcançar seus objetivos, propõe-se que estaria fazendo uso da Inteligência Negocial. Assim, a Inteligência Negocial é aquela através da qual o negociador de talento mobiliza suas inteligências múltiplas no sentido resolver problemas genuínos com soluções criativas, adotando conscientemente os comportamentos mais eficazes para cada negociação.
Dessa forma, conclui-se que a negociação evoluiu de uma atividade com fins persuasivos para a sobrevivência coletiva, para uma atividade profissional, exercida por indivíduos capazes de obter ganhos em escala para suas organizações, assegurando a manutenção dos relacionamentos.
O caminho para desenvolver o negociador de talento altamente eficaz passa pelo aprimoramento da inteligência negocial, que surge pela soma dos conhecimentos adquiridos em relação às questões substantivas da negociação, as manifestações comportamentais e as inteligências múltiplas.
É na operacionalização desses saberes em prol do alcance de resultados positivos que reside a proficiência em negociação. O negociador de talento é aquele que domina todos os elementos envolvidos em uma negociação, mas, antes de tudo, é aquele que conhece a si mesmo, de forma profunda e inequívoca.
Com isso, esperamos ter alcançado nosso principal objetivo, que era o desenvolvimento do perfil do negociador ideal, como profissional dinâmico e adaptável, capaz de prover soluções nos mais variados contextos, independente do ambiente em que atua.
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