7 de abr. de 2020

ENSINO RELIGIOSO: RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS


RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS: DIREITOS, IDENTIDADES, SENTIDOS E PRÁTICAS DO “POVO-DE-SANTO”

No Brasil, importante parcela da população é composta por descendentes de africanos, povos que trouxeram bases culturais religiosas que influenciaram decisivamente as práticas espirituais de nosso povo.
A pluralidade brasileira de identidades culturais e étnico-raciais nem sempre encontra, no âmbito da educação, sua legitimidade garantida nos espaços escolares em todos os níveis e modalidades. O país ainda precisa reconhecer, efetivamente, a contribuição estruturante essencial da cultura e população afro-brasileira na construção da história e identidade do povo brasileiro. Trata-se de valorizar e afirmar direitos, incluindo o reconhecimento de suas expressões e manifestações religiosas, principalmente por sua importância e penetração na raiz cultural no povo brasileiro.
Os preconceitos manifestados contra as religiões afro-brasileiras têm muitas raízes ligadas à classe social que os negros tradicionalmente integraram, ou seja, a parcela da população que, durante muito tempo, foi excluída do acesso às riquezas materiais e simbólicas produzidas pela sociedade de seu tempo. É como se houvesse uma ligação constante, que se influencia mutuamente, entre religiões afro-brasileiras e pobreza: a Umbanda foi originalmente criada por pobres, em sua maioria negros, e por isso sofreu, e ainda sofre, estigmas e preconceitos enquanto religião. Seus adeptos, por sua vez, são marginalizados por integrarem uma religião historicamente formada por pobres e negros, o que cria um circuito de afirmação constante do estereótipo negativo.
Denominam-se religiões afro-brasileiras o conjunto de práticas religiosas que se originaram dos povos africanos em nossa terra e nomeia-se povo-de-santo o conjunto de seus praticantes, notadamente os integrantes do Candomblé, Umbanda e suas variantes.
As religiões afro-brasileiras são inúmeras, com uma enorme variação de formatos praticados em todo o território nacional. Podemos destacar o Candomblé, originário da Bahia e atualmente vigente em vários Estados da Federação. O Candomblé, ou Candomblés no plural – como alguns autores apontam dada a enorme variedade e matizes com que se apresentam – é oriundo das nações Nagô, Jeje, Angola, Congo e alguns são miscigenados, como o Candomblé de Caboclo, com influência indígena. Existe ainda a Macumba (nos Estados do Rio de Janeiro e São Paulo) que é, segundo Cacciatore (1977), o nome dado à Quimbanda. Há também o Xangô, nome de um dos orixás, mas também de um formato de culto Nagô, preponderante nos Estados de Pernambuco, Paraíba, Alagoas e Sergipe. Pratica-se, ademais, o Tambor de Mina, um culto Jeje e o Tambor de Nagô, culto de origem cultural no grupo de mesmo nome, ambos existentes no Maranhão.
Encontramos também o Batuque nos Estados do Rio Grande do Sul e Pará, e Babaçue neste último Estado. O Catimbó existe em todo o Nordeste brasileiro. A Pajelança é praticada na Amazônia, Maranhão e Piauí. Há o Toré, também denominado Caboclo Nordestino, principalmente em Sergipe. O mais disseminado de todos os cultos afro-brasileiros é a Umbanda, praticada em todo o Brasil, expandindo-se para o exterior, aí incluídos os países do Prata.
Existe ainda o Omolocô, Xambá e Cabula, entre outras. A lista de religiões afro-brasileiras em nosso país é extensa. Vamos aqui apresentar apenas alguns aspectos para que possamos conhecer um pouco mais da religiosidade popular de origem africana de nosso povo.
Na religiosidade afro-brasileira há muitas manifestações de caráter festivo-religioso, como as Congadas, que são autos populares de motivação africana, representando a coroação de Reis do Congo; os Maracatus, grupos carnavalescos que surgiram principalmente em Pernambuco, originários dos séquitos negros que seguiam a coroação dos Reis do Congo, sincretizando o batuque com a homenagem a Nossa Senhora do Rosário (CACCIATORE, 1977); os Afoxés, ranchos negros de carnaval, dos quais um dos mais populares se tornou o Afoxé Filhos de Gandhi, da Bahia, cujas vestimentas e práticas reproduzem parte da indumentária islâmica, inclusive abrindo o cortejo com o Padê (despacho, oferecimento de comidas) a Exú, mensageiro entre os planos espiritual e material, pedindo licença para “abrir os caminhos”, ou seja, dar seguimento ao desfile que é, ao mesmo tempo, ritualístico e festivo.
Além disso, em âmbito social, percebemos a influência da religiosidade afro nas vestimentas das tradicionais “baianas vendedoras de acarajé”, e também nos trajes das mães-de-santo nos terreiros de Candomblé e Umbanda.
Estudar os fenômenos religiosos como fenômenos sociais ajuda nos a compreender a formação cultural do Brasil. Há neles uma simbologia complexa que expressa visões míticas do mundo consubstanciadas em múltiplos e diversos rituais. Ou seja, estudando os ritos religiosos podemos compreender muito das concepções simbólicas do povo brasileiro, seus mitos, símbolos identitários e sentidos que emanam destes.

MITOS E RITOS: PARA COMPREENDER A RELIGIOSIDADE AFRO-BRASILEIRA
Os mitos e ritos são engendrados ao longo de milênios e transformam-se continuamente, adquirindo novos contornos de modernidade, ainda que alicerçados em sólidas bases de tradição. Mircea Eliade (1992, p. 84-85) afirma a respeito dos mitos que
[...] o mito conta uma história sagrada, quer dizer um acontecimento primordial que teve lugar no começo do Tempo... Mas contar uma história sagrada equivale a revelar um mistério, pois as personagens do mito não são seres humanos: são deuses ou Heróis civilizadores. Por esta razão seus gestos constituem mistérios: o homem não poderia conhecê-los se não lhe fossem revelados... Uma vez dito, quer dizer, revelado, o mito torna-se verdade apodítica: funda a verdade absoluta... O mito proclama a aparição de uma nova situação cósmica ou de um acontecimento primordial. Portanto, é sempre a narração de uma criação: conta-se como qualquer coisa foi efetuada, começou a ser. É por isto que o mito é solidário da ontologia: só fala das realidades, do que aconteceu realmente, ou que se manifestou plenamente.
Os mitos das religiões afro-brasileiras são, portanto, engendrados nas interpretações das populações de origem africana sobre seus mistérios, símbolos e acontecimentos, e constituem, de fato, marcos históricos, à medida que gestam explicações sobre a realidade vivida. Para exemplificar e tornar mais clara a ideia da representação das realidades vividas, vamos examinar um mito central na religiosidade afro-brasileira: a criação do mundo.
Oxalá é o nome brasileiro de Obatalá, responsável pela criação do mundo e da humanidade. Ele é filho de Olórun, deus supremo, que lhe delegou poderes para governar o mundo. Na cultura brasileira, foi sincretizado com a devoção católica ao Senhor do Bonfim. Oxalá tem duas formas: Oxaguiã, a da mocidade, um guerreiro com vigor e nobreza; e ainda Oxalufã, da velhice, cheia de bondade, com uma figura nobre e curvada ao peso dos anos, apoiado em seu “paxorô” (cajado). Na África, continente originário, tem muitos nomes. É o rei dos orixás e dos homens, a mais querida e respeitada entre as entidades afro-brasileiras.
A forma envelhecida de Oxalá, Oxalufã, é o orixá responsável pela criação, patrono da fecundidade e da procriação. É uma entidade purificadora, e foi lavado com água doce após ter sido espancado e preso durante anos, por engano, ao visitar o reino de Xangô, o reino de Oyó. Este último, ao descobrir a falha, fez tudo para homenageá-lo, lavando-o em banhos curativos, rito que deu origem à cerimônia “Água de Oxalá”.
Segundo Cacciatore (1977), esta é uma cerimônia de purificação e abertura do tempo sagrado – das grandes festas – realizadas nos Candomblés Nagô e Jeje. No Brasil, tem relação com esta manifestação a famosa Lavagem do Bonfim, realizada em Salvador entre 15 e 17 de janeiro.
Nesta ocasião, os praticantes das religiões afro-brasileiras, trajados majestosamente com vestimentas brancas, evocando Oxalá, portam jarros d’água, entoam cânticos, realizam rezas e preceitos ritualísticos enquanto lavam as escadarias da Igreja do Bonfim. Esta é feita em honra de Obatalá (Oxalá). Interessante notar nesta cerimônia sincrética como os ritos afrobrasileiros se entrecruzam com o catolicismo: Oxalufã é sincretizado com Nosso Senhor do Bonfim (Jesus Cristo na Cruz, padroeiro da Catedral). Sua cor também é branca, seu dia é sexta-feira e sua saudação é “Epa Babá”. Sua natureza em certos mitos é tanto masculina como feminina; sacerdote supremo, divino.
Oxaguiã é a forma de Oxalá jovem, guerreiro. Também veste branco e às vezes é sincretizado com Jesus, quando Menino. Também é conhecido como Orixáguinhã (VERGER, 1999).
Roger Bastide (1985), importante pesquisador francês que investigou a cultura popular de origem africana no Brasil, já apontou que as populações negras trazidas para cá pertenciam a diferentes civilizações e provinham das mais variadas regiões africanas. Segundo Yvie Favero (2010), suas religiões eram partes de estruturas familiares, organizadas social ou ecologicamente a meios biogeográficos.
Esses grupos praticavam suas religiões em seus ambientes culturais de origem e com a vinda para o Brasil na condição de escravos, impedidos de praticar seus rituais e compelidos a integrar uma sociedade cuja estrutura lhes é exógena, a população negra começa a desintegrar, na nova terra, suas tradições culturais historicamente consolidadas. Na sequência, como resposta a este desmoronamento, começa a elaborar suas estratégias de sobrevivência religiosa. Então, apesar da perseguição, os negros africanos refazem suas tradições no novo continente e elas adquirem, assim, o formato “afro-brasileiro”, já influenciadas e sincretizadas com as culturas com as quais entram em contato quando chegam ao território brasileiro.
Evidentemente, sua condição de escravo levava à subalternidade suas matrizes culturais em relação ao poder constituído hegemônico das elites de origem europeia, ocidental e cristã. Significa dizer que sua cultura foi subjugada, oprimida e violentada por ser considerada oriunda de um grupo inferiorizado na hierarquia social do país.
No aspecto religioso, especificamente, as religiões de matrizes africanas foram perseguidas física e simbolicamente. A repressão abateu- -se sobre qualquer tentativa de expressá-las, e surgem, então, as estratégias de sobrevivência religiosa, que vão do sincretismo à transmutação dos ritos, símbolos e espaços sagrados; ou seja, vão da assimilação de traços culturais das religiões dominantes, principalmente da católica, à alteração de ritos e mitos, de forma a amenizar as “africanidades” de suas características e, assim, minimizar a perseguição.
O sincretismo com a função de sobrevivência ocorrerá principalmente com a religiosidade católica, da qual decorre a formação das Irmandades, como, por exemplo, as Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, mas também será consequência de interação com outras matrizes espirituais não hegemônicas como as indígenas, resultando nos cultos afro-indígenas.
É preciso compreender que, no passado, nos séculos em que era vigente o sistema escravista, o poder colonial e suas instituições de origem europeia, ocidental e católica eram hegemônicas e disseminavam seus valores simbólicos como os únicos válidos. É o que denominamos etnocentrismo e, neste caso, eurocentrismo, a concepção de que o centro principal do mundo nos mais variados aspectos, está em uma única raiz étnica, a europeia.
Nesta lógica, o simbolismo oriundo das populações marginalizadas e escravizadas era ameaçador e passível de violentas punições. Assim, sob os domínios do Cristianismo, a população negra no Brasil logo compreenderá que deverá apropriar-se da simbologia deste para conseguir fazer resistir suas tradições e crenças.
As religiões afro-brasileiras têm como uma de suas bases a confluência entre divindades e natureza, construindo uma totalidade.
No Candomblé não há representação de elementos da natureza, mas as divindades são os próprios elementos da natureza. A movimentação corporal, as danças, a arte, os objetos, tecidos, comidas e todo um vasto conjunto de elementos simbólicos articulam-se na busca da integração à natureza, ou seja, às divindades.
O Candomblé, originário da África e que adquire feição própria em solo brasileiro, é uma congregação de sobrevivências étnicas que teve grande disseminação e reinterpretação como cultura afro-brasileira em nosso país, uma produção cultural que constrói a aliança entre os planos do sagrado e do humano. A sociedade do Candomblé é controlada e protegida por dois elementos fundamentais: a natureza, o meio ambiente, corporificada e santificada nos orixás e as expressões dos antepassados. A música, dança, canto, gestos e alimentos emanam a força vital e as máscaras, esculturas, adornos e pinturas contribuem na unidade do grupo social, simbolizando seus ciclos e passagens.
De modo geral, as religiões afro-brasileiras têm como um dos pilares fundantes míticos a harmonia com a natureza. Por esta representação inspirada na natureza, sofrem os impactos da degradação desta e passam a alterar progressivamente seu desenvolvimento ritualístico e até mesmo dogmático visando à adaptação (TRAMONTE, 2002).
Ao mesmo tempo em que os rituais sofrem transformações advindas da deterioração ambiental, a religião é responsável também por estruturar a visão ecológica desta população. Nesse sentido, contribui para uma preocupação maior com a questão, já que a busca permanente pela harmonia entre ser humano e natureza lhe é inerente. Esta procura constante sobrevive nas adversidades, dinamicamente, transformando-se de forma contínua, agregando novos membros, redefinindo valores e posturas e confrontando espiritualidades ancestrais com novas exigências. Prova desta contribuição é que na Bahia, nos anos de 1980, entre as conquistas do “povo-de-santo” daquele Estado, está a inclusão na Constituição Estadual da obrigatoriedade de preservação de mananciais, flora e sítios arqueológicos vinculados à religião afro-brasileira.
Pela centralidade que a ecologia cumpre na espiritualidade afrobrasileira, a religião é responsável por estruturar a visão do povo-de-santo e, em alguns casos, resulta em iniciativas no cotidiano ritual e material as quais visam à maior preservação. Compreende-se que a falência dos elementos naturais resulta em falência espiritual e religiosa. Neste caso, entendemos que os terreiros têm uma função educativa, normatizando hábitos e criando valores éticos junto a seus integrantes.

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