RELIGIÕES
AFRO-BRASILEIRAS: DIREITOS, IDENTIDADES, SENTIDOS E PRÁTICAS DO “POVO-DE-SANTO”
No
Brasil, importante parcela da população é composta por descendentes de
africanos, povos que trouxeram bases culturais religiosas que influenciaram
decisivamente as práticas espirituais de nosso povo.
A
pluralidade brasileira de identidades culturais e étnico-raciais nem sempre
encontra, no âmbito da educação, sua legitimidade garantida nos espaços
escolares em todos os níveis e modalidades. O país ainda precisa reconhecer, efetivamente,
a contribuição estruturante essencial da cultura e população afro-brasileira na
construção da história e identidade do povo brasileiro. Trata-se de valorizar e
afirmar direitos, incluindo o reconhecimento de suas expressões e manifestações
religiosas, principalmente por sua importância e penetração na raiz cultural no
povo brasileiro.
Os
preconceitos manifestados contra as religiões afro-brasileiras têm muitas
raízes ligadas à classe social que os negros tradicionalmente integraram, ou
seja, a parcela da população que, durante muito tempo, foi excluída do acesso
às riquezas materiais e simbólicas produzidas pela sociedade de seu tempo. É
como se houvesse uma ligação constante, que se influencia mutuamente, entre
religiões afro-brasileiras e pobreza: a Umbanda foi originalmente criada por
pobres, em sua maioria negros, e por isso sofreu, e ainda sofre, estigmas e
preconceitos enquanto religião. Seus adeptos, por sua vez, são marginalizados
por integrarem uma religião historicamente formada por pobres e negros, o que
cria um circuito de afirmação constante do estereótipo negativo.
Denominam-se
religiões afro-brasileiras o conjunto de práticas religiosas que se originaram
dos povos africanos em nossa terra e nomeia-se povo-de-santo o conjunto de seus
praticantes, notadamente os integrantes do Candomblé, Umbanda e suas variantes.
As
religiões afro-brasileiras são inúmeras, com uma enorme variação de formatos
praticados em todo o território nacional. Podemos destacar o Candomblé,
originário da Bahia e atualmente vigente em vários Estados da Federação. O
Candomblé, ou Candomblés no plural – como alguns autores apontam dada a enorme
variedade e matizes com que se apresentam – é oriundo das nações Nagô, Jeje,
Angola, Congo e alguns são miscigenados, como o Candomblé de Caboclo, com
influência indígena. Existe ainda a Macumba (nos Estados do Rio de Janeiro e
São Paulo) que é, segundo Cacciatore (1977), o nome dado à Quimbanda. Há também
o Xangô, nome de um dos orixás, mas também de um formato de culto Nagô, preponderante
nos Estados de Pernambuco, Paraíba, Alagoas e Sergipe. Pratica-se, ademais, o
Tambor de Mina, um culto Jeje e o Tambor de Nagô, culto de origem cultural no
grupo de mesmo nome, ambos existentes no Maranhão.
Encontramos
também o Batuque nos Estados do Rio Grande do Sul e Pará, e Babaçue neste
último Estado. O Catimbó existe em todo o Nordeste brasileiro. A Pajelança é
praticada na Amazônia, Maranhão e Piauí. Há o Toré, também denominado Caboclo
Nordestino, principalmente em Sergipe. O mais disseminado de todos os cultos
afro-brasileiros é a Umbanda, praticada em todo o Brasil, expandindo-se para o
exterior, aí incluídos os países do Prata.
Existe
ainda o Omolocô, Xambá e Cabula, entre outras. A lista de religiões
afro-brasileiras em nosso país é extensa. Vamos aqui apresentar apenas alguns
aspectos para que possamos conhecer um pouco mais da religiosidade popular de
origem africana de nosso povo.
Na
religiosidade afro-brasileira há muitas manifestações de caráter
festivo-religioso, como as Congadas, que são autos populares de motivação
africana, representando a coroação de Reis do Congo; os Maracatus, grupos
carnavalescos que surgiram principalmente em Pernambuco, originários dos
séquitos negros que seguiam a coroação dos Reis do Congo, sincretizando o
batuque com a homenagem a Nossa Senhora do Rosário (CACCIATORE, 1977); os
Afoxés, ranchos negros de carnaval, dos quais um dos mais populares se tornou o
Afoxé Filhos de Gandhi, da Bahia, cujas vestimentas e práticas reproduzem parte
da indumentária islâmica, inclusive abrindo o cortejo com o Padê (despacho,
oferecimento de comidas) a Exú, mensageiro entre os planos espiritual e
material, pedindo licença para “abrir os caminhos”, ou seja, dar seguimento ao
desfile que é, ao mesmo tempo, ritualístico e festivo.
Além
disso, em âmbito social, percebemos a influência da religiosidade afro nas
vestimentas das tradicionais “baianas vendedoras de acarajé”, e também nos
trajes das mães-de-santo nos terreiros de Candomblé e Umbanda.
Estudar
os fenômenos religiosos como fenômenos sociais ajuda nos a compreender a
formação cultural do Brasil. Há neles uma simbologia complexa que expressa
visões míticas do mundo consubstanciadas em múltiplos e diversos rituais. Ou
seja, estudando os ritos religiosos podemos compreender muito das concepções
simbólicas do povo brasileiro, seus mitos, símbolos identitários e sentidos que
emanam destes.
MITOS
E RITOS: PARA COMPREENDER A RELIGIOSIDADE AFRO-BRASILEIRA
Os
mitos e ritos são engendrados ao longo de milênios e transformam-se
continuamente, adquirindo novos contornos de modernidade, ainda que alicerçados
em sólidas bases de tradição. Mircea Eliade (1992, p. 84-85) afirma a respeito
dos mitos que
[...]
o mito conta uma história sagrada, quer dizer um acontecimento primordial que
teve lugar no começo do Tempo... Mas contar uma história sagrada equivale a
revelar um mistério, pois as personagens do mito não são seres humanos: são
deuses ou Heróis civilizadores. Por esta razão seus gestos constituem
mistérios: o homem não poderia conhecê-los se não lhe fossem revelados... Uma
vez dito, quer dizer, revelado, o mito torna-se verdade apodítica: funda a
verdade absoluta... O mito proclama a aparição de uma nova situação cósmica ou
de um acontecimento primordial. Portanto, é sempre a narração de uma criação:
conta-se como qualquer coisa foi efetuada, começou a ser. É por isto que o mito
é solidário da ontologia: só fala das realidades, do que aconteceu realmente,
ou que se manifestou plenamente.
Os
mitos das religiões afro-brasileiras são, portanto, engendrados nas
interpretações das populações de origem africana sobre seus mistérios, símbolos
e acontecimentos, e constituem, de fato, marcos históricos, à medida que gestam
explicações sobre a realidade vivida. Para exemplificar e tornar mais clara a
ideia da representação das realidades vividas, vamos examinar um mito central
na religiosidade afro-brasileira: a criação do mundo.
Oxalá
é o nome brasileiro de Obatalá, responsável pela criação do mundo e da
humanidade. Ele é filho de Olórun, deus supremo, que lhe delegou poderes para
governar o mundo. Na cultura brasileira, foi sincretizado com a devoção
católica ao Senhor do Bonfim. Oxalá tem duas formas: Oxaguiã, a da mocidade, um
guerreiro com vigor e nobreza; e ainda Oxalufã, da velhice, cheia de bondade,
com uma figura nobre e curvada ao peso dos anos, apoiado em seu “paxorô”
(cajado). Na África, continente originário, tem muitos nomes. É o rei dos
orixás e dos homens, a mais querida e respeitada entre as entidades
afro-brasileiras.
A
forma envelhecida de Oxalá, Oxalufã, é o orixá responsável pela criação,
patrono da fecundidade e da procriação. É uma entidade purificadora, e foi
lavado com água doce após ter sido espancado e preso durante anos, por engano,
ao visitar o reino de Xangô, o reino de Oyó. Este último, ao descobrir a falha,
fez tudo para homenageá-lo, lavando-o em banhos curativos, rito que deu origem
à cerimônia “Água de Oxalá”.
Segundo
Cacciatore (1977), esta é uma cerimônia de purificação e abertura do tempo
sagrado – das grandes festas – realizadas nos Candomblés Nagô e Jeje. No
Brasil, tem relação com esta manifestação a famosa Lavagem do Bonfim, realizada
em Salvador entre 15 e 17 de janeiro.
Nesta
ocasião, os praticantes das religiões afro-brasileiras, trajados majestosamente
com vestimentas brancas, evocando Oxalá, portam jarros d’água, entoam cânticos,
realizam rezas e preceitos ritualísticos enquanto lavam as escadarias da Igreja
do Bonfim. Esta é feita em honra de Obatalá (Oxalá). Interessante notar nesta
cerimônia sincrética como os ritos afrobrasileiros se entrecruzam com o
catolicismo: Oxalufã é sincretizado com Nosso Senhor do Bonfim (Jesus Cristo na
Cruz, padroeiro da Catedral). Sua cor também é branca, seu dia é sexta-feira e
sua saudação é “Epa Babá”. Sua natureza em certos mitos é tanto masculina como
feminina; sacerdote supremo, divino.
Oxaguiã
é a forma de Oxalá jovem, guerreiro. Também veste branco e às vezes é
sincretizado com Jesus, quando Menino. Também é conhecido como Orixáguinhã
(VERGER, 1999).
Roger
Bastide (1985), importante pesquisador francês que investigou a cultura popular
de origem africana no Brasil, já apontou que as populações negras trazidas para
cá pertenciam a diferentes civilizações e provinham das mais variadas regiões
africanas. Segundo Yvie Favero (2010), suas religiões eram partes de estruturas
familiares, organizadas social ou ecologicamente a meios biogeográficos.
Esses
grupos praticavam suas religiões em seus ambientes culturais de origem e com a
vinda para o Brasil na condição de escravos, impedidos de praticar seus rituais
e compelidos a integrar uma sociedade cuja estrutura lhes é exógena, a
população negra começa a desintegrar, na nova terra, suas tradições culturais
historicamente consolidadas. Na sequência, como resposta a este desmoronamento,
começa a elaborar suas estratégias de sobrevivência religiosa. Então, apesar da
perseguição, os negros africanos refazem suas tradições no novo continente e
elas adquirem, assim, o formato “afro-brasileiro”, já influenciadas e
sincretizadas com as culturas com as quais entram em contato quando chegam ao
território brasileiro.
Evidentemente,
sua condição de escravo levava à subalternidade suas matrizes culturais em
relação ao poder constituído hegemônico das elites de origem europeia, ocidental
e cristã. Significa dizer que sua cultura foi subjugada, oprimida e violentada
por ser considerada oriunda de um grupo inferiorizado na hierarquia social do
país.
No
aspecto religioso, especificamente, as religiões de matrizes africanas foram
perseguidas física e simbolicamente. A repressão abateu- -se sobre qualquer
tentativa de expressá-las, e surgem, então, as estratégias de sobrevivência
religiosa, que vão do sincretismo à transmutação dos ritos, símbolos e espaços
sagrados; ou seja, vão da assimilação de traços culturais das religiões
dominantes, principalmente da católica, à alteração de ritos e mitos, de forma
a amenizar as “africanidades” de suas características e, assim, minimizar a
perseguição.
O
sincretismo com a função de sobrevivência ocorrerá principalmente com a
religiosidade católica, da qual decorre a formação das Irmandades, como, por
exemplo, as Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, mas também será
consequência de interação com outras matrizes espirituais não hegemônicas como
as indígenas, resultando nos cultos afro-indígenas.
É
preciso compreender que, no passado, nos séculos em que era vigente o sistema
escravista, o poder colonial e suas instituições de origem europeia, ocidental
e católica eram hegemônicas e disseminavam seus valores simbólicos como os
únicos válidos. É o que denominamos etnocentrismo e, neste caso, eurocentrismo,
a concepção de que o centro principal do mundo nos mais variados aspectos, está
em uma única raiz étnica, a europeia.
Nesta
lógica, o simbolismo oriundo das populações marginalizadas e escravizadas era
ameaçador e passível de violentas punições. Assim, sob os domínios do
Cristianismo, a população negra no Brasil logo compreenderá que deverá
apropriar-se da simbologia deste para conseguir fazer resistir suas tradições e
crenças.
As
religiões afro-brasileiras têm como uma de suas bases a confluência entre
divindades e natureza, construindo uma totalidade.
No
Candomblé não há representação de elementos da natureza, mas as divindades são
os próprios elementos da natureza. A movimentação corporal, as danças, a arte,
os objetos, tecidos, comidas e todo um vasto conjunto de elementos simbólicos
articulam-se na busca da integração à natureza, ou seja, às divindades.
O
Candomblé, originário da África e que adquire feição própria em solo
brasileiro, é uma congregação de sobrevivências étnicas que teve grande
disseminação e reinterpretação como cultura afro-brasileira em nosso país, uma
produção cultural que constrói a aliança entre os planos do sagrado e do
humano. A sociedade do Candomblé é controlada e protegida por dois elementos
fundamentais: a natureza, o meio ambiente, corporificada e santificada nos
orixás e as expressões dos antepassados. A música, dança, canto, gestos e
alimentos emanam a força vital e as máscaras, esculturas, adornos e pinturas
contribuem na unidade do grupo social, simbolizando seus ciclos e passagens.
De
modo geral, as religiões afro-brasileiras têm como um dos pilares fundantes
míticos a harmonia com a natureza. Por esta representação inspirada na
natureza, sofrem os impactos da degradação desta e passam a alterar
progressivamente seu desenvolvimento ritualístico e até mesmo dogmático visando
à adaptação (TRAMONTE, 2002).
Ao
mesmo tempo em que os rituais sofrem transformações advindas da deterioração
ambiental, a religião é responsável também por estruturar a visão ecológica
desta população. Nesse sentido, contribui para uma preocupação maior com a
questão, já que a busca permanente pela harmonia entre ser humano e natureza
lhe é inerente. Esta procura constante sobrevive nas adversidades,
dinamicamente, transformando-se de forma contínua, agregando novos membros,
redefinindo valores e posturas e confrontando espiritualidades ancestrais com
novas exigências. Prova desta contribuição é que na Bahia, nos anos de 1980,
entre as conquistas do “povo-de-santo” daquele Estado, está a inclusão na
Constituição Estadual da obrigatoriedade de preservação de mananciais, flora e
sítios arqueológicos vinculados à religião afro-brasileira.
Pela
centralidade que a ecologia cumpre na espiritualidade afrobrasileira, a
religião é responsável por estruturar a visão do povo-de-santo e, em alguns
casos, resulta em iniciativas no cotidiano ritual e material as quais visam à
maior preservação. Compreende-se que a falência dos elementos naturais resulta
em falência espiritual e religiosa. Neste caso, entendemos que os terreiros têm
uma função educativa, normatizando hábitos e criando valores éticos junto a
seus integrantes.
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