RELAÇÕES INTERCULTURAIS, DIVERSIDADE
RELIGIOSA E EDUCAÇÃO: DESAFIOS E POSSIBILIDADES
A presença nas
escolas de crianças, adolescentes e jovens pertencentes a famílias e
comunidades que professam diferentes crenças religiosas e não religiosas coloca
a necessidade de se desenvolver propostas educacionais para trabalhar pedagogicamente
com temáticas relativas à diversidade religiosa.
A educação para a
cidadania no contexto da escola pública implica também o desenvolvimento de
atitudes de tolerância, reciprocidade e civismo na relação entre pessoas que
professam diferentes opções relativas à religião.
Este é um desafio
educacional que pretendemos aqui analisar sob uma perspectiva intercultural, no
sentido de buscarmos desenvolver formas criativas, críticas e dialógicas de
relações entre grupos e contextos culturais religiosos e não religiosos.
O DESAFIO DAS RELAÇÕES INTERCULTURAIS
Conta-se que quando o
Presidente dos Estados Unidos, Franklin Pierce, propôs em 1854 comprar a terra
do povo Duwamish, o chefe Seatle lhe teria respondido com um longo discurso,
que traduz sua instigante visão de mundo:
Como é que se pode
comprar ou vender o céu, o calor da terra? [...]. Cada pedaço dessa terra é
sagrado para o meu povo. [...] Essa água brilhante que escorre nos riachos e
nos rios não é apenas água, mas o sangue de nossos antepassados. [...]. Os rios
são nossos irmãos, saciam nossa sede. [...] Se vierem a habitar nossa terra,
vocês devem lembrar e ensinar a seus filhos que os rios são nossos irmãos, e
seus também. [...] Se ocuparem nossa terra, vocês devem mantê-la intacta e
sagrada [...]. Vocês devem ensinar às suas crianças que o solo sob seus pés é a
cinza de nossos avós [...]: que a terra é nossa mãe. [...]. De uma coisa
estamos certos – e o homem branco poderá vir a descobrir um dia: nosso Deus é o
mesmo. Vocês podem pensar que o possuem, como desejam possuir nossa terra, mas
não é possível. Ele é o Deus do Homem e sua compaixão é igual para o homem
vermelho e para o homem branco [...].
Podemos imaginar
quanto teriam aprendido as culturas europeias se, em vez de conquistar,
tivessem realizado um diálogo intercultural com os povos ancestrais ameríndios!
Se tivessem aprendido a cuidar da natureza como os povos aborígines cuidam! Se
tivessem compreendido suas culturas e suas visões religiosas! Certamente as
gerações seguintes não teriam a situação catastrófica em que hoje nos
encontramos em termos de sustentabilidade da vida e da convivência em nosso
planeta!
Realizar relações
interculturais é um dos desafios mais importantes que se colocam à humanidade,
pois possibilita construir de maneira crítica, cooperativa e criativa, soluções
aos grandes problemas mediante a articulação entre as formas de convivência
desenvolvidas ao longo de densas e diferentes histórias culturais. A relação
dialógica entre as culturas e a cooperação entre povos pode favorecer a
construção de modelos sustentáveis de interação dos seres humanos entre si e
com a natureza.
Entretanto,
desenvolver relações entre povos diferentes não é uma ação fácil nem tranquila.
É um processo profundamente conflituoso e dramático. A história nos revela que
a interação entre povos e grupos sociais diferentes tem resultado em guerras,
genocídios, processos de colonização e dominação. Entender, pois, tal processo
de relações interculturais torna-se a condição para compreender e desconstruir
as lógicas que conduzem à destruição ou à sujeição mútua. Mais que isso, para
descobrir as possibilidades criativas e dialógicas das relações entre grupos e
contextos culturais diferentes.
IMPORTÂNCIA DA RELIGIÃO PARA AS CULTURAS ANCESTRAIS
Cultura pode ser
entendida como um padrão de significados transmitidos historicamente, um
sistema de concepções herdadas e expressas em formas simbólicas por meio das
quais os seres humanos comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e
suas atividades em relação à vida (GEERTZ, 1989). No contexto da cultura, os
símbolos sagrados constituem um fator importante para sintetizar o modo de ser
de um povo. Para o antropólogo Clifford Geertz (1989, p. 104-105),
[...] religião é um sistema de símbolos que
atua para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e
motivações nos homens através da formulação de uma ordem de existência geral e
vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que as disposições e
motivações parecem singularmente realistas.
Os conceitos e
princípios da religião alimentam a convicção para explicar fatos que não são
explicáveis e para enfrentar situações humanamente insuportáveis (como o
sofrimento, a morte, as catástrofes, a injustiça).
A religião, assim, é
uma dimensão estruturante da identidade pessoal, social e cultural, à medida
que proporciona explicações aos enigmas e mistérios da vida e do mundo,
ensejando uma compreensão articulada da ordem da natureza e do universo. Desse
modo, as religiões podem ser consideradas como partes integrantes e
integradoras das diferentes culturas.
Entretanto, mesmo
verificando que a maioria dos povos possui elementos religiosos e que estes
possuem aspectos comuns, constatamos que, do ponto de vista epistemológico,
eles variam muito de uma sociedade para outra, de um grupo para outro. As
religiões não apresentam uma matriz homogênea, pois cada grupo social possui
uma experiência particular do sagrado manifestada através de uma vasta
variedade de cultos, símbolos, textos, templos, ritos e celebrações. Assim,
podemos afirmar que não existe uma cosmovisão única nem uma religião comum,
universal.
Sendo a religião um
dos núcleos articuladores de culturas e povos, a negação das religiões
autóctones e a imposição pelos conquistadores de um culto pressupostamente
universal destruíram a capacidade de resistência cultural e coesão política dos
povos invadidos, predispondo-os à sujeição e à desagregação. A visão de mundo
holista e mítica inerente às culturas ancestrais foi desqualificada e duramente
combatida no processo de colonização, destruindo o núcleo cultural articulador
da coesão sociocultural e da soberania econômico-política dos povos
colonizados.
Para os povos ancestrais
ameríndios, a visão de natureza encontra-se intimamente ligada à visão
religiosa de mundo, porque a Mãe-Terra, geradora da vida, é considerada
sagrada. A maioria das culturas autóctones ameríndias entende a Terra como mãe
que protege, que promove a vida como dádiva e reciprocidade. Da mesma forma que
a natureza cuida e torna possível a vida humana, os seres humanos são
convidados a cuidar e a proteger a natureza.
A
CULTURA E A RELIGIOSIDADE GUARANI
Diante
da grande diversidade cultural existente entre os povos indígenas no Brasil,
evidenciaremos como a religiosidade é vivida, tomando como exemplo a dos
Guarani. Elegemos este povo por ser, atualmente, a maior população indígena no
país, vivendo majoritariamente no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná,
São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Tocantins e
Pará, Estados nos quais se registra a presença das parcialidades Kaiowá, Mbya e
Xiripá/Nhandeva.
Quando
os Guarani Mbya falam nhande reko (que
significa nossos costumes, hábitos, leis, cultura, tradição, sistema), estão se
referindo ao seu singular modo de pensar e ser, que é, por si, o núcleo da
unidade. Estão falando “nossa tradição”, que expressa um complexo conjunto de
valores, conhecimentos, crenças e práticas em interação, transmitido pelos mais
velhos aos mais novos, de geração em geração, tido como seu referencial, sua
orientação.
Para os
Mbya, nhande reko é não apenas o sentido da vida, mas a forma ideal de viver
nesta terra, em conformidade com os ensinamentos dos antigos, que possuem
arandu (sabedoria). Reciprocidade e solidariedade integram noções centrais no
modo de ser Guarani.
O
costume como base e fonte permanente de interpretação e atuação, unifica os
Guarani, mas também os diferencia, dadas as diversas realidades e respostas das
comunidades, abertas em maior ou menor grau às influências externas. Essa
tradição contém dinamicidade, transformação, mutação, pois se insere no
tempo-espaço e em contextos intersocietários distintos.
Apesar
de cada comunidade ter suas características próprias e viver contextos
diversos, todas seguem o nhande reko da mesma maneira, demonstrando grande
preocupação em manter a unidade de sua cultura e de sua sociedade.
Maneira
correta de pensar e fazer, o sistema é essencialmente um todo orgânico, pensado
e vivido com particularidades devido a variados fatores, podendo-se dizer que é
substantivado por aspectos centrais, dos quais se ressaltam: opy (casa
cerimonial, de reza), opygua, karai, kunhã karai, nhanderu (xamã), ma’etỹ
(plantação) enhe’ẽ ou ayvu (palavra).
A opy,
casa cerimonial, é espaço sagrado, a primeira e central construção da aldeia.
Erguida em regime de mutirão, com formato retangular, cuja frente aponta para a
direção do sol nascente e porta direcionada a oeste. Requer madeira para a
estrutura, taquara e argila para as paredes, cipó imbé para as amarras,
palmeira para a cobertura, sendo o chão de terra batida, com paredes que devem
vedar a entrada de luminosidade.
Nela
ocorrem os rituais noturnos, após os xondaro (dança, ritual de preparo e
aquecimento anterior à entrada na opy) nos pátios/praças, prenhes de música,
objetivando a abolição da descontinuidade existente nesta terra e o alcance da
continuidade na próxima terra, a “visão” da Terra sem Males, a possibilidade da
audição dos deuses para haver certeza de que os humanos guarani não serão esquecidos
nesta terra. Nos rituais, são tocados os instrumentos musicais como popygua
(varas de madeira), takuapu (bastões de taquara), mbaraka (violão), rave
(violino de três cordas), angu’a (tambor); é fumado tabaco no petyngua
(cachimbo); tomado ka’a (erva mate); utilizados adornos (como colares,
tembetás, plumárias), apyka (banco de madeira) e tata (fogo), evidenciando uma
estrutura cosmológica-ecológica-social, um circuito que integra todo o “modo de
ser”, robustecendo o pensamento e retemperando o desígnio existencial.
A opy é
local privilegiado e tem significado essencial no estudo e conhecimento do
“sistema” e, consequentemente, no aperfeiçoamento humano. O termo opy abrange o
sentido religioso, o estudo-aprendizado, a manutenção da saúde e da alegria. É
local de afirmação e transmissão de conhecimentos, simbolizando a ponte, a
possibilidade de comunicação entre seres humanos e deuses, através das belas
palavras – linguagem específica utilizada pelos xamãs durante a sua comunicação
com as divindades. “A opy é a nossa escola, é lá que se fala sobre a vida, como
os deuses pensam sobre o mundo, a humanidade, a vida na aldeia, a prática do
ensinamento, mas é uma escola livre, entra quem quiser” (Leonardo da Silva
Gonçalves5 ). “Nossa farmácia é o mato e o nosso hospital é a opy” (Félix
Brisuela6 ), visto ser também o local dos rituais de cura. Ambos Guarani Mbya
reforçam ser a casa de reza a igreja, a escola, a universidade, o hospital, ou
seja, corresponde a uma edificação central em termos cosmológicos.
Estreitamente
vinculado à opy está o/a xamã, figura central na sociedade Guarani. O termo que
designa rezador, pajé, curador, liderança ou dirigente religioso, abrange
variedade no que se refere a poderes, funções, reconhecimento, idade e gênero.
Xamãs são denominados nhanderu, opygua, karai (homens), kunha karai (mulheres),
os guias e interlocutores entre os que estão nesta terra e aqueles que já estão
na próxima terra, os mediadores entre os humanos e as divindades, atualizando
notícias dessa outra dimensão.
Aos
mitos, rituais e atuações dos xamãs somam-se os sonhos, detentores de sentido.
Por meio dos sonhos ocorre a conquista da “visão verdadeira” (CICCARONE, 2001),
sendo uma possibilidade de conexão dos humanos com as deidades, o aviso das
divindades sempre a solicitar reflexões e interpretações. Os Mbya sonham, por
exemplo, com a futura concepção dos filhos, plantas para cura, áreas para
viver, locais de ruínas de pedra e estratégias de existência. Através dos
sonhos se efetiva a recepção de poraéi (reza, canto), verdadeira dádiva divina.
As mensagens oníricas estão diretamente relacionadas ao estudo, revelação e
arandu (sabedoria). É recorrente a prática de contar os próprios sonhos ou
sonhos contados pelos antigos avós, interconectando narrativas, mensagens e
visões no tempo e no espaço, oportunizando a interpretação coletiva de seus
conteúdos.
A
alimentação é embebida de sentido mítico-religioso e compõe um aspecto
destacado na cosmovisão Guarani, estando relacionada à leveza do corpo e
perfeição do ser. A dieta ideal compõe-se basicamente de produtos dos cultivos
(como o milho, feijão, batata doce, melancia, abóbora, mandioca e amendoim),
coleta de frutas (butiá, guabiroba, jaracatiá, jabuticaba, etc.), mel e
palmito, somados a proteínas como ovo, peixe, carne de frango ou caça, além da
apreciadíssima larva da palmeira. Alguns desses itens são pilados, assados ou
cozidos, preparados sem gordura ou sal, de acordo com as prescrições dos
antigos. Parte de tudo isso é a ervamate, bebida sempre presente nas aldeias.
As
normas e os cuidados com o plantio, a colheita, a escolha dos alimentos e o
preparo da comida são determinados pelos deuses, sendo das mulheres a
responsabilidade no preparo dos alimentos, que significam “fonte para produção
e reprodução do indivíduo e da sociedade [...]. O alimento verdadeiro permite a
manutenção do equilíbrio do indivíduo, dos homens entre si e com os mundos
terreno e divino” (CICCARONE, 2001, p. 38). Há profunda imbricação entre fogo,
alimento e mulher. Guardar o fogo do alimento e dos rituais é função da mulher
e remete à “identificação indígena da sociedade com o feminino” (CICCARONE,
2001, p. 237).
Não é
possível viver a religiosidade guarani sem a existência do lugar, da terra que
tenha ligação com a esfera divina.
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