JUSTIÇA SOCIAL E JUSTIÇA INDIVIDUAL
Joenildo Fonseca Leite
“... um dos argumentos mais poderosos em favor da liberdade
política reside precisamente na oportunidade que ela dá aos
cidadãos de debater sobre valores na escolha das prioridades e de
participar da seleção desses valores.”
Amartya Sen – Desenvolvimento como liberdade.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 10
de dezembro de 1948 dotou todos os homens de um status de igualdade – “membros
da família humana”. E, por conseguinte, de direitos e deveres na manutenção
deste. Desta forma, encerra-se a hegemonia do liberalismo nas constituições
(direitos negativos) e iniciasse uma nova fase, na qual o Estado tem o dever de
agir (direitos positivos) para promover a justiça social e a igualdade entre as
pessoas.
Nossa pretensão é demonstrar que a promoção da
igualdade e da liberdade é capaz de levar o equilíbrio e a justiça social às
parcelas desprivilegiadas da população. Para tanto, trataremos de forma abreviada
do conceito de justiça e seus fundamentos.
O conceito de justiça sofreu diversas mutações ao longo
de sua “evolução”. Partiremos, pois, do
conceito de justiça como proporção. Desta forma, conforme os ensinamentos de
Aristóteles, a justiça está intimamente ligada à vida em sociedade.
Onde, “o justo também será aquele que respeita a lei
e que é equitativo”. Em síntese, o justo
por deferência às leis estabelecidas pelos homens e por observâncias aos
princípios da igualdade, que se expressam na proporcionalidade.
Na realidade, apesar e em virtude da evolução dos conceitos
de justiça, nossa crença é de que este é impreterivelmente uma noção
particular, que deve primar pela necessidade e suficiência das ações tendo em vista
o resultado almejado.
Parafraseando Beccaria, um ato só é justo quando
necessário e condizente com o interesse público.
Modernamente, não basta, como
definição de justiça, somente a felicidade (Platão), a verdade (Aristóteles), a
razão divina (Tomás de Aquino) ou a autonomia da vontade (Kant). É preciso mais
para prover nossa sociedade do verdadeiro espírito da justiça. É neste contexto
que percebemos a liberdade como um dos fundamentos da igualdade e, por
consequência, da justiça.
Entretanto, não há que se falar em liberdade quando
os membros da sociedade não possuem os meios necessários para prover sua subsistência
e a dos que deles dependem com dignidade. A liberdade é algo mais complexo e
dinâmico do que o “simples” ir e vir, é o poder de se afirmar e subsistir em
igualdade com os demais membros de nossa sociedade.
Não
podemos pensar na valorização dos ideais da Revolução Francesa e dos preceitos da
Declaração Universal de Direitos Humanos sem a extinção da apartheid social, que
aumenta o fosso entre os dotados dos meios mais do que necessários à sua subsistência
e os despossuídos. Assim, segundo Rousseau
(2000, p. 141):
“... se vemos um punhado de
poderosos e de ricos no auge da grandeza e da fortuna, ao passo que a multidão
rasteja na obscuridade e na miséria, é porque os primeiros só estimam as coisas
de que gozam na medida em que os outros delas carecem e, sem mudar de estado,
cessariam de ser felizes se o povo deixasse de ser miserável.”
Do
fragmento acima exposto, deduzimos que a preservação do status quo atual é
fundamental à sobrevivência de uma minoria privilegiada em detrimento de uma
maioria. Pensamento este que não está em sintonia com as concepções modernas de
justiça. Para John Rawls, “o fato de alguns terem menos para que os outros
prosperem pode ser útil, mas não é justo”.
Nossa
Carta Magna erigiu a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa
do Brasil (Art. 1º, III – CR/88).
Elegeu, como um de seus objetivos, a erradicação da pobreza e da marginalização
e a redução às desigualdades sociais e regionais, promovendo o bem de todos sem
preconceitos e discriminações.
O
desenvolvimento, nas palavras de Amartya Sen, “requer que se removam as
principais fontes de privação de liberdade: pobreza e tirania, carência de
oportunidades econômicas e destituição social sistemática, negligência dos
serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva de Estados
repressivos”.
Desta
forma, o conceito de justiça mais eficaz na maximização das liberdades das
pessoas é encontrado em John Rawls, “a justiça é a virtude primeira de todas as
instituições sociais” – justiça social.
Assim, prover os hipossuficientes dos meios necessários a uma vida digna
é dever do Estado, que tem de zelar pelo cumprimento dos “pactos” capazes de promover
os princípios da igualdade e da diferença. Princípios estes que são capazes de
impulsionar os ajustes necessários às transformações da sociedade na busca da
promoção social, econômica, política e cultural.
Um povo só se torna realmente justo quando
conhece, de forma clara e objetiva, o real significado da palavra justiça.
Infelizmente, o princípio de justiça ainda não é
muito bem compreendido pelo povo brasileiro. Uma das causas é que, na Língua
Portuguesa, a palavra justiça também é utilizada para referir-se a órgãos do
Setor Judiciário, (Justiça do Trabalho, Justiça Federal, Justiça Internacional,
etc...). Essa duplicidade na linguagem ajuda a confundir os cidadãos menos
esclarecidos.
Já é hora de os brasileiros se conscientizarem de
que a palavra justiça refere-se, antes de tudo, a um princípio de equidade, de
igualdade proporcional; um princípio de sabedoria que deveria ser utilizado
pelo Governo em todas as áreas e, principalmente, pelo Poder Judiciário.
Os brasileiros ainda não entenderam a importância socioeconômica
de se levar a sério o princípio de justiça. A maioria dos cidadãos conhece
apenas duas situações: ser beneficiado ou ser prejudicado. Infelizmente, a
Educação brasileira não nos ensinou a discernir estes extremos e a adotar
situações intermediárias. É no ponto médio, entre o benefício e o malefício,
que encontramos o que é justo para todos.
Em linhas gerais, ser justo é não oprimir nem
privilegiar, não menosprezar nem endeusar, não subvalorizar e tampouco
supervalorizar. Ser justo é saber dividir corretamente sem subtrair e sem
adicionar (sem roubar ou subornar). Ser justo é não se apropriar de pertences
alheios e dar o correto valor a cada coisa e a cada pessoa. Ser justo é
estabelecer regras claras sem dar vantagem para uns e desvantagem para outros.
Ser justo é encontrar o equilíbrio que satisfaz ou sacrifica, por igual, sem
deixar resíduos de insatisfação que possam resultar em desforras posteriores.
A ausência de uma boa educação, nesse sentido, tem
propiciado comportamentos extremistas (ora omisso, ora violento) por parte da
maioria dos cidadãos. Observe que até pouco tempo a maioria dos brasileiros
preferia se calar mesmo diante das inúmeras explorações do nosso dia-a-dia. O
maior problema, consequente desse tipo de comportamento surge com o decorrer do
tempo. A falta de diálogo para se estabelecer o que é justo e correto, faz o
cidadão prejudicado se cansar de ser omisso e partir pra violência (ir direto
ao outro extremo). Essas reações têm acontecido até mesmo entre parentes e
vizinhos. Por isso, precisamos nos reeducar. Os cristãos, em especial, precisam
ensinar ao povo o que é justo e correto para que os cidadãos não se tornem
omissos e saibam estabelecer o diálogo ao perceber toda e qualquer injustiça.
Se cultivarmos um padrão de comportamento realmente justo, ninguém acumulará
motivos para se tornar infeliz, desleal, subornável ou violento.
Em todos os casos de injustiças (profissionais,
comerciais, de relacionamento etc.) a pessoa prejudicada deve primeiramente ir
até a pessoa injusta lhe pedir que corrija a injustiça. Se não surtir efeito
deve levar pelo menos uma outra pessoa para que também dê testemunho (reclame)
daquela injustiça. Se, apesar disso, a pessoa injusta não se corrigir, aí então
deve levar o caso ao conhecimento das autoridades competentes para que elas
determinem a solução. É muito importante entendermos que primeiramente deve
haver duas tentativas de diálogo, só depois destas tentativas é que o caso deve
ser entregue às autoridades.
Por outro lado, as autoridades precisam agir de
maneira totalmente imparcial (sem se inclinar para nenhum dos lados), em
respeito aos ensinamentos bíblicos que ordenam que: nem mesmo para favorecer
ao pobre se distorça o que é justo, e que sempre se use o mesmo padrão de
peso e de medida para qualquer pessoa, seja pobre, rico, analfabeto, doutor,
mendigo, autoridade, etc... A sociedade precisa entender que é a prática
correta do princípio de justiça que produz a paz social viabilizando a
prosperidade de forma ordeira e bem distribuída.
A esperteza, a exploração e a má fé, são técnicas
ilusórias que têm vida curta e acidentada. As instituições governamentais,
empresas privadas e negócios pessoais, estabelecidos com injustiças, com espertezas,
com explorações e má fé, são comparáveis a construções sobre areia porque
desmoronam nos dias de tempestades (crises, pragas, acidentes, novas
concorrências, etc.). Mas, os negócios estabelecidos de forma justa, com
justiça nos preços, nos salários, nos serviços e nos relacionamentos em geral,
são comparáveis a construções sobre rocha porque permanecem de pé mesmo depois
de grandes tempestades.
Portanto, precisamos abandonar a mania
subdesenvolvida de gostar de levar vantagem em tudo, e cultivar a mania
desenvolvida de gostar de fazer e receber justiça em tudo. Já é hora de
entendermos que a vantagem que se leva hoje se transforma no prejuízo de
amanhã, enquanto a justiça que se pratica hoje se transformará no lucro de
amanhã.
Comportar-se de forma realmente justa, tanto na
hora de dar ou de vender, quanto na hora de cobrar ou de receber, é condição
primordial para um povo se tornar pacífico e bem-sucedido.
A Carta Cidadã brasileira, em sintonia
com a evolução dos direitos humanos, reza que a ordem econômica tem como finalidade
“assegurar a todos uma existência digna” e em observância aos ditames da
justiça social. Assim, é necessário que os que carecem da assistência estatal utilizem-se
dos mecanismos oferecidos pela Constituição para fazerem valer seus direitos.
Em consonância com este entendimento
John Rawls acredita que a justiça define-se em virtude de sua realização pelas
instituições, que devem corrigir as distorções encontradas na sociedade através
da utilização de dois princípios basilares: da igualdade e da desigualdade. É a
teoria da justiça em movimento buscando prover os cidadãos dos meios necessários
à sua realização nos planos da vida em sociedade.
A
Declaração Universal dos Direitos Humanos — fruto da necessidade de se compartilhar
valores comuns em sociedade — traz o imperativo de se criar medidas de cunho
igualitário, que tenham aplicação extensiva a todas as camadas sociais.
Perseguindo,
desta forma, o crescimento econômico sustentável em detrimento do avanço
nefando do sistema neocapitalista.
Hodiernamente,
o grande desafio de nossos governantes é a promoção social, política, econômica
e cultural em sua plenitude – solidária aos conceitos fundamentais de justiça
esboçados neste trabalho. É impossível haver justiça sem que haja igualdade de
oportunidades e liberdade para que as pessoas optem por um ou outro modo de
vida.
Em
resumo, “o que as pessoas conseguem positivamente realizar é influenciado por oportunidades
econômicas, liberdades políticas, poderes sociais e por condições habilitadoras
como boa saúde, educação básica e incentivo e aperfeiçoamento de iniciativas”
(Sen, 2000, p. 19).
REFERÊNCIAS
BITTAR, Eduardo
Carlos Bianca. ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. 8
Ed. São Paulo: Atlas, 2010. P. 451.
CHARON, Joel M. Sociologia. São Paulo.
Saraiva,1999.
MAFFETTONE,
Sebastiano. VECA, Salvatore. (orgs.).
A ideia de justiça de Platão a Rawls. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
QUEIROZ, Paulo de
Souza. Direito penal: parte geral. 6 Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2010.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social.
São Paulo: Abril Cultural, 1978.
ROUSSEAU,
Jean-Jacques. Discurso sobre as ciências e as artes: Discurso sobre a origem e
os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo: Martin Claret, 2010.
SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como
liberdade. Tradução Laura Teixeira
Motta. São Paulo: Companhia das Letras,
2000.
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