4 de mai. de 2020

ANTROPOLOGIA GERAL E O MULTICULTURALISMO - Parte 2


A PERGUNTA PELO HOMEM E SUAS RESPOSTAS

Com o advento da reforma protestante, a concepção medieval do ser humano é colocada em xeque. A partir das teses de Lutero, a ideia de indivíduo vai adquirindo relevância e acaba por se tornar um dos componentes ideológicos mais importantes da modernidade.
Outros movimentos culturais do Ocidente, que foram fundamentais para forjar a moderna visão de ser humano, foram o Renascimento, com a retomada do debate em torno dos textos e questões colocadas pelos pensadores da Antiguidade Clássica; o Iluminismo, movimento filosófico do século XVIII que se baseia na confiança na razão como capaz de solucionar os problemas práticos da vida humana, e, por fim, as transformações que se dão quando da Revolução Industrial, que forja o mito do progresso e a valorização da ciência.
Todo esse quadro contribui para o nascimento da moderna visão de mundo do ser humano, que se fia na razão e na experiência e que apresenta autonomia, autocontrole e postura reflexiva, prezando antes de tudo a liberdade e fundando suas relações de trocas econômicas no livre mercado (LEITE DA LUZ; BOHMANN, 2013).
Com a modernidade surge então a concepção de Homo faber, o ser humano enquanto capaz de controlar seu destino e meio ambiente através da invenção e fabrico de instrumentos e ferramentas por meio de seu engenho, noção essa fundamental para compreender a visão de mundo da humanidade neste período histórico.
De acordo com Pommer (2012), o mais notável no conceito de Homo faber relaciona se com a ideia do ser humano, expressa pelo termo faber, não só como aquele que fabrica e opera ferramentas, mas, antes de mais nada, como aquele que inventa, que cria tendo em vista o fazer, alguém que pela invenção interfere e transforma o mundo por seu desejo e/ou necessidade.
O surgimento do Homo faber só seria possível, assim, a partir da adoção da postura ereta para o caminhar e da liberação dos membros superiores para a manipulação de objetos, marcando na história de nossa evolução nossa distinção, enquanto espécie, do restante dos animais (POMMER, 2012).
Para nós, é significativa a perspectiva de Homo faber como aquele que foi capaz de produzir cultura e desenvolver a sociabilidade, constituindo-se historicamente. Desta forma, aborda-se o ser humano a partir de suas atividades, onde o trabalho e a técnica mostram-se constitutivos da especificidade da experiência humana (POMMER, 2012).
Tendo em vista esta dimensão humana, aquela do trabalho e do emprego de técnicas, a humanidade define-se através do trabalho, imperativo colocado a todas as gerações através da história e que adquire feições específicas ao longo desta, caracterizando-nos desta forma. Assim, na Antiguidade Clássica, o trabalho é desvalorizado, visto como um empecilho ao desenvolvimento do intelecto, que só é possível no ócio. Já no medievo, o trabalho é tido como um empecilho à verdadeira realização humana, que é espiritual e se dá por uma relação com Deus. Com a modernidade, assistimos à valorização da ideia de trabalho, que passa a ser visto como caminho da realização humana, pelo menos até ser alienado, no capitalismo (POMMER, 2012).
Somente com o Homo faber, produzindo os meios de sua subsistência, é que adquirimos nossa especificidade face aos outros animais. De fato, de acordo com Marx (MARX, 1982 apud POMMER, 2012), quando produzimos nosso meio de vida, e consequentemente nossa vida material, é que nos tornamos humanos, pois o ser humano se forja através dos meios pelos quais este produz aquilo que necessita, enquanto parte de um grupo social. Assim, a existência individual do Homo faber, enquanto ser cultural e social que é, é devedora de sua ação produtiva.
Desta forma, Pommer (2012, p. 182) chama a atenção para o fato do emblema do homem moderno ser sua condição de “(...) tirar da natureza com as mãos e com o cérebro, isto é, com a força física e com a inteligência, as condições reais para a vida (...)”.
É fato que o ser humano indaga-se a respeito de si mesmo desde os primórdios de nossa existência, entretanto, estes questionamentos só adquirem um caráter científico a partir de meados do século XIX, com a constituição das chamadas “Ciências Sociais”, como a Sociologia, a Antropologia e a Psicologia, entre outras.
Chamamos a atenção aqui, prezado aluno, para uma importante característica dos questionamentos que nos colocamos a respeito de nós mesmos: esses são condicionados pela sociedade e cultura à qual pertencemos. Assim, as perguntas que nos colocamos acerca de nossa condição humana variam espaço e temporalmente, sendo devedoras da cultura onde estamos inseridos e da sociedade à qual pertencemos. Da mesma forma, as respostas que damos aos nossos questionamentos variam de acordo com a sociedade e tempo histórico.
Na modernidade, as indagações que fazemos sobre nós relacionam-se com a visão típica desta época histórica, sendo devedoras da razão e da empiria, da ideia de indivíduo livre, reflexivo, autônomo e autocontrolado, próprias deste tempo. As ciências sociais, desta maneira, mostram-se como resultante do crescente processo de racionalização e positivação do mundo (LEITE DA LUZ; BOHMANN, 2013).
Outro fato marcante das reflexões que se dão a partir da modernidade está no encontro do Ocidente com outras civilizações, que fomenta as especulações acerca da natureza humana e de sua universalidade ou não.
Assim, a abordagem científica do ser humano, seja na Antropologia, na Sociologia ou na Psicologia, só se constitui enquanto tal a partir do século XIX, quando está consolidado o processo de estabelecimento do capitalismo enquanto modo de produção da humanidade.
Somente no século XIX é que se mostrou possível o estabelecimento de uma investigação propriamente científica do ser humano, a partir da influência no pensamento ocidental do racionalismo, do empirismo e do positivismo na Ciência.
O ser humano passa então a ser investigado quanto às suas “(...) ações, emoções, afetos, posturas morais, formas de sociabilidade, formas jurídicas e políticas, formas estéticas, razões ou racionalidades” (POMMER, 2012, p. 98). Cabe à Antropologia, à Sociologia e à Psicologia, a partir daí, o estabelecimento dos padrões culturais e comportamentais típicos da humanidade, como caracterizados por estas disciplinas, e que servem na orientação, quando da formulação de leis, projetos e programas de governo, por parte destas, muitas vezes objetivando o controle social. Todas estas ciências estão, em seus questionamentos e respostas propostas, desta forma, indelevelmente marcadas pela “(...) ideia de progresso, de liberdade e de autoafirmação humanos” (POMMER, 2012, p. 100).

REFERÊNCIAS

ERIKSEN, Thomas Hylland; NIELSEN, Finn Sivert. História da Antropologia.
Petrópolis: Vozes, 2012.
ESPINA BARRIO, Angel-B. Manual de Antropologia Cultural. Recife: Editora
Massangana, 2005.
GOMES, Mércio Pereira. Antropologia: ciência do Homem.,filosofia da cultura. São Paulo: Contexto, 2013.
HOEBEL, E. Adamson; FROST, Everest L. Antropologia Cultural e Social. São Paulo: Cultrix, 2006.
LUZ, Pedro Fernandes Leite da; BOHMANN, Junqueira Katja. Sociologia crítica.
Indaial: Uniasselvi, 2013.
LARAIA, R. B. Cultura, um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
MARCONI, Marina de Andrade; PRESOTTO, Zelia Maria Neves. Antropologia: uma introdução. São Paulo: Atlas, 2001.
POMMER, Arildo. Antropologia filosófica e sociológica. Indaial: Uniasselvi, 2012.


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