Se a medicina moderna, com todos os recursos, não consegue a cura de tantas doenças, podemos imaginar como era 2 mil anos atrás. Grande parte da população era doente e o índice de mortalidade era alto. Isso explica por que grande parte do evangelho relata o ministério de Jesus curando doentes de toda espécie. Os gestos milagrosos de Jesus são conhecidos como “gestos poderosos”, “sinais” ou “obras” de Deus. São sinais de que o Reino de Deus chegou na prática libertadora de Jesus (Mt 12.28; Lc 11.20).
Jesus curou quatro cegos, quatro paralíticos, um leproso, outros dez leprosos de uma vez, exorcizou cinco endemoninhados, curou a distância a filha da cananeia e o empregado do oficial romano, devolveu a fala a um surdo-mudo, baixou a febre da sogra de Pedro, curou uma mulher com hemorragia, colocou a orelha de um soldado, além de realizar diversas curas em massa (SCHIAVO e DA SILVA, 2000, p. 17).
Quanto aos tipos de milagres, os evangelhos falam de curas e de libertações de possessões do demônio ou exorcismos. Nem sempre é clara a distinção entre as duas formas de intervenção curativa de Jesus. Isso porque algumas doenças físicas ou psicofísicas – surdez, mutismo, epilepsia – eram atribuídas à presença e ação dos espíritos maus (Mt 12.22; Lc 11.14). Analisemos alguns relatos para mostrar a dimensão da cura e seu significado na prática de Jesus.
3.1. A sogra de Pedro pôs-se a servi-los (Mc 1.29-31)
É o relato de cura mais breve. Jesus vai ao encontro dos doentes, junto com seus discípulos. Ele é o terapeuta da família, pois visita as casas do povo. Não se sabe a causa da doença da sogra de Pedro. Jesus, sem dizer uma palavra, apenas “tomou-a pela mão e a fez levantar-se” (Mc 1.31), e a febre a deixou. O resultado da cura: a sogra de Pedro voltou a fazer o que sempre fazia, “pôs-se a servi-los”. Mais uma vez aparece a humanidade de Jesus. A cura vai acontecer na solidariedade e compaixão com os doentes.
No relato paralelo de Lc 4.38-39, Jesus cura fazendo uma espécie de exorcismo: “esconjurou a febre”. Muitos acreditavam que a febre vinha dos espíritos do mal. O importante foi o resultado da visita de Jesus em vista da cura.
3.2. O leproso tocado por Jesus e integrado na sociedade (Mc 1.40-45)
O relato apresenta o leproso que foi até Jesus e implorou-lhe a cura, pondo-se de joelhos (cf. Mc 1.40). Marcos relata que Jesus foi movido por compaixão (cf. Mc 1.41). Jesus foi tocado pela situação dramática daquele homem e se compadeceu,
“tocou-o” e o curou. Jesus rompe o preconceito segundo o qual tocar uma pessoa com aquela enfermidade fazia impuro quem a tocasse. Ele é movido de compaixão, aproxima-se e assim revela a face de Deus compadecido pelos doentes. Jesus vai na contramão dos costumes da época e resgata a dignidade da pessoa. Ele acolhe, ouve a súplica e toca. Aconteceu uma cura e libertação da pessoa doente, sua dignidade foi resgatada. Como reação, aquele que antes era leproso e vivia excluído, longe da comunidade, não pode guardar silêncio. Ele sai e proclama a boa notícia por toda parte. Fica clara a inclusão do curado na comunidade, mediante a prática de Jesus em favor dos excluídos. Fica claro também que a fé do doente coopera no processo da cura com o toque e as palavras de Jesus “quero, fica purificado”.
3.3. O que era paralítico saiu carregando o leito (Mc 2.1-12)
Como na narrativa da cura do leproso que veio até Jesus (cf. Mc 1.40), aqui muitos vão até Jesus “em casa”. Ocasião em que trazem um paralítico no leito (cf. Mc 2.3). O cenário é a casa apinhada de pessoas, de sorte que ninguém podia entrar. O relato é dramático pelo fato de descobrirem o telhado para introduzir o paralítico com seu leito! O doente nada diz, mas Jesus, vendo a fé daqueles que carregavam o doente, fala: “Filho, os teus pecados estão perdoados” (Mc 12.5).
Há uma introdução do tema do perdão dos pecados associado à cura (cf. Mc 2.5b-10a). Jesus ordena: “Para que saibais que o Filho do homem tem o poder de perdoar pecados na terra, eu te ordeno, levanta-te” (Mc 2.10b-11). O resultado é imediato: o paralítico se levantou e saiu diante de todos carregando seu leito (Mc 2.12).
O mesmo que entrou com dificuldade, sendo carregado, agora sai carregando a própria cama. A libertação é integral com o perdão dos pecados e a recuperação do enfermo.
O pecado, segundo a concepção judaica da época, estava ligado à enfermidade (GNILKA, 1986, p. 116). Realmente o mal, os pecados bloqueiam as pessoas, paralisam. O perdão solta os laços, as cadeias, liberta a pessoa para caminhar com as próprias pernas. A prática de Jesus ligada à sua grande compaixão revela a nova face de Deus, humana, como um Pai. Ele chama o paralítico de “filho”. A cura conta com a fé e a solidariedade da comunidade, representada naqueles que carregavam o paralítico.
3.4. O que era endemoninhado se tornou missionário (Mc 5.1-20)
Trata-se do caso do endemoninhado de Gerasa. Do extremo da situação de exclusão, sofrimento e violência, o homem é curado e aparece “vestido, sentado e de são juízo”. Depois, é enviado a anunciar o que Jesus fez por ele. O narrador descreve o fato num contexto de viagem. As indicações de desembarque em Gerasa (cf. Mc 5.1) e subida no barco (cf. Mc 5.18) mostram a preocupação de situar o relato no contexto de missão.
No final do milagre, Jesus parte de volta (cf. Mc 5.18) e também o curado parte em missão por ordem de Jesus. A ordem de marchar ou de ir para casa é típica da conclusão de relatos de milagres (Mc 1.44; 2,11; 5.34; 8.29; 10.52). A preocupação de ir aos outros lugares deriva do interesse do evangelista de destacar a urgência da missão.
Certas repetições parecem acentuar também a necessidade de testemunhar o fato: por duas vezes, o endemoninhado vai a Jesus (cf. Mc 5.2 e 5.6). Duas vezes é contado o que aconteceu ao endemoninhado e aos porcos por meio dos pastores (cf. Mc 5.14) e daqueles que viram (cf. Mc 5.16).
O fato será testemunhado também pelo próprio curado, que anunciará aos seus o milagre. O afogamento no mar dos porcos, associados à legião, indica a derrota definitiva do poder do mal. (Porcos: sistema judaico da lei do puro e impuro que excluía; legião: força organizada de destruição comandada pelo poder romano na região da Decápole.)
O milagre mostra a rejeição da dominação política. A simbologia das correntes, grilhões, algemas sugere o contexto de escravidão. A narração indica a luta de Jesus, “o mais forte para amarrar o homem forte” (Mc 3.27).
Gerd Theissen tem também essa posição: “a opressão por um povo dirigente estrangeiro às vezes aparece em código, como possessão por um espírito estrangeiro”.
No texto de Marcos, a menção dos 2 mil porcos que despencaram mar adentro simboliza a libertação do povo da dominação das legiões romanas no território da Decápole. A possessão dos demônios em sociedades tradicionais muitas vezes também é reflexo de antagonismos de classe enraizados na exploração econômica. A possessão pode ser ainda uma forma socialmente aceitável de protesto indireto contra a opressão, ou mesmo fuga desta. A tensão entre seu ódio aos opressores e a necessidade de reprimir esse ódio a fim de evitar recriminações dos opressores leva o indivíduo a ficar louco… Ele se retirava a um mundo interior onde pudesse resistir à dominação.
Nesse sentido, o endemoninhado representa a ansiedade coletiva diante do imperialismo. Trata-se, segundo Franz Fanon, de colonização da mente, em que a angústia da comunidade diante de sua subjugação é reprimida e, depois, se volta contra si mesma. Isso parece ser suposto no relato de Marcos, quando diz que o homem emprega violência contra si mesmo (cf. Mc 5.5).
Segundo Carmen Bernabé Ubieta, “as doenças de possessão são reflexo corporal de um conflito interno produzido em grande medida pela defasagem entre os desejos e sentimentos internos e o que as normas sociais impõem e permitem à pessoa. Nesse caso, por meio dos demônios que gritam, a pessoa expressa indiretamente as queixas que tem contra o seu ambiente (“A cura do endemoninhado de Gerasa”, in AGUIRRE, 2005, p. 113).
3.5. O cego Bartimeu tornado discípulo (Mc 10.46-52)
O relato situa-se no contexto da caminhada de Jesus para Jerusalém, em que ele instrui os discípulos sobre a natureza da sua missão messiânica, revela quem ele é e apresenta as exigências do seguimento. Aos poucos, os discípulos vão compreender o que é ser discípulo, sua mente e seus olhos vão se abrir. A intervenção de Jesus curando cegos antes de iniciar a caminhada (cf. Mc 8.22-26) – e, no final da caminhada, já próximos a Jerusalém (cf. Mc 10.52-56) – tem a ver com a cura da cegueira dos discípulos.
A cura significa a aquisição de nova visão, a mudança de paradigmas para entender o projeto de Jesus. Certas particularidades do relato parecem querer apresentar o modelo do discípulo. Vejamos.
É o único milagre no qual nos é dado o nome da pessoa curada e também o único caso em que o curado segue Jesus. Ao seguir Jesus, ele joga o manto e vai atrás. É instrutiva a comparação com a cura do cego de Betsaida (Mc 8.22-26) e também a cura do surdo-mudo situado na Decápole (Mc 7.31-37). No primeiro relato, Jesus é o protagonista de toda a ação, conduz o cego pela mão para fora, faz barro com saliva, aplica no olho. No segundo relato, na cura do cego Bartimeu, os dados se invertem. O doente é o sujeito da maior parte das ações. É ele quem grita e pede: “Filho de Davi, Jesus, tem compaixão de mim” (Mc 10.47). Ele deixa a capa, levanta-se, vai até Jesus (cf. Mc 10.50). Há um diálogo e Jesus lhe pergunta: “Que queres que eu te faça?” O cego responde: “Que eu possa ver novamente” (Mc 10.51). E o relato termina com as palavras de Jesus: “Vai, a tua fé te salvou”. Porque foi salvo da cegueira, ele seguia Jesus pelo caminho (Mc 10.52).
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