No Antigo Testamento, a cura é sempre atribuída à intervenção de Deus, Senhor da vida e da morte. A doença era vista muitas vezes como castigo de Deus pelo pecado. No anúncio da libertação futura, a cura e a saúde seriam restituídas com a eliminação do pecado, causa dos males (cf. Is 33.24; Sl 40.5).
No entanto, “a partir do exílio por influência babilônica, toma força a personificação de certos seres inimigos de Deus, e assim se difunde a crença de que anjos maus e demônios também eram causadores da dor, doença e morte” (CHAPA, “Exorcistas”, in AGUIRRE, 2009, p. 121).
Na Bíblia, a cura dos males vem de Deus, considerado o médico supremo. Por esse motivo, o recurso aos médicos era visto quase como ofensa a Deus. O rei Asa é admoestado porque “nem mesmo na doença procurou o Senhor, recorrendo só aos médicos” (2Cr 16.12) (cf. VENDRAME, “Curas”, in Dicionário Interdisciplinar da Pastoral da Saúde, 1999, p. 275).
Na verdade, havia certos tabus que impediam o avanço da medicina. Por exemplo, a proibição de tocar em cadáveres impedia a autópsia e a descoberta das causas das doenças (Nm 5.2; 6.6; 19.11-16). A aversão pelo sangue derramado (Gn 9.3-4; Lv 19.26) impedia qualquer experimento em matéria de cirurgia. A lei da pureza legal marginalizava os doentes de pele, chamados leprosos (Lv 13-14) (SCHIAVO e DA SILVA, 2000, p. 43).
Depois do exílio, abre-se o caminho para a ciência médica e para uma medicina alternativa. Porém não à margem do poder de Deus. O médico deve ser honrado, mas é do Altíssimo que vem a cura: ele deu a ciência aos homens, como também ao farmacêutico que prepara as misturas (VENDRAME, idem, p. 275).
As curas individuais são poucas. As mais famosas são a cura da lepra de Naamã (2 Rs 5.1-27), a cura de uma enfermidade mortal de Ezequias (2 Rs 20.1-11; Is 38.1-22), a cura de Jeroboão (1 Rs 12.26-13,10), de Miriam, irmã de Moisés (Nm 12.11-15), de Nabucodonosor (Dn 4.1-34). Há muitos salmos de súplica por cura de doença (Sl 6; 22; 38; 39; 88; 102; 143), mas também de ação de graças pela cura (Sl 30).
2.1. A cura de Naamã: uma nova vida na fé (2Rs 5,1-27)
Trata-se de um relato de cura da lepra com intervenção do profeta Eliseu. Observemos os efeitos da cura: além da restituição da saúde física, houve uma transformação na vida daquele homem, comenta Olivier Artus (Curar e salvar no Antigo Testamento, in MICHEL e PIERRE, 2007, p. 46). Por duas vezes o relato utiliza o substantivo “servo” para expressar essa mudança. De um lado, percebe-se a arrogância de Naamã, que se admirava do fato de Eliseu não vir a seu encontro e enviar um mensageiro (2 Rs 5.11). Após a cura, a arrogância dá lugar à reverência para com o profeta, e Naamã fala como “servo” do profeta: “Por favor, aceita este presente do teu servo” (2 Rs 5.15). Naamã, no início do relato, é apresentado pelo rei de Aram (Síria) como “seu servo”, depois Naamã designa-se a si mesmo como servo de Eliseu, em 2 Rs 5.15.18. Definido em 2 Rs 5.1 como chefe do exército do rei de Aram, a partir de 2 Rs 5.15 Naamã encontra nova identidade fundada na fé no Deus de Israel: “Agora sei que não há Deus em toda a terra a não ser em Israel”. As observações acerca do personagem Naamã mostram que a cura não constitui o núcleo da transformação: ela se torna possível por sua conversão, que o faz adotar uma atitude de servo com relação a Eliseu, homem de Deus. A cura é sinal de uma transformação interna.
2.2. A cura de Ezequias: Deus escutou sua oração (2 Rs 20.1-11)
Ezequias, rei de Judá, é atingido por uma doença mortal. O profeta Isaías lhe anuncia que morrerá em breve. Ezequias cai em prantos e, em sua oração, expressa que sempre foi fiel e praticou o que era agradável aos olhos de Deus. Logo em seguida Isaías é enviado a transmitir a boa-nova ao rei: “O Senhor escutou a prece e viu suas lágrimas!” Com uma aplicação de espécie de pasta de figos sobre a úlcera, Ezequias é curado e vive mais 17 anos. Temos a súplica em prantos que é ouvida por Deus. Vemos nas palavras de Ezequias que ele foi fiel e fez o que era agradável a Deus (cf. 2 Rs 20.3). Pela concepção da teologia da retribuição, Deus recompensa os bons e castiga os malvados. Ezequias é curado, pois reivindicou os seus méritos na oração. Como não havia explicação para a causa da doença, o mal era atribuído a um possível castigo de Deus. E a cura só poderia vir de Deus. Ele fere e cura a ferida (cf. Dt 32.39)! Porém essa cura acontece com intervenção humana, mediante a aplicação de uma pasta de figos. Uma teologia mais desenvolvida da cura e libertação na Bíblia valoriza a intervenção humana e os remédios para a cura, no caso as plantas úteis como alimento e remédio (cf. Gn 1.30; Ez 47.12).
2.3. Salmo de ação de graças de um doente curado (Sl 30)
O salmista exalta o Senhor porque o tirou do scheol (30.2). “Eu te exalto, Senhor, porque me livraste”. O verbo hebraico dalah (30.2), que significa tirar para fora, é usado quando se fala de tirar água do fundo do poço com um balde. É traduzido também como “livrar”. A imagem é forte, pois o salmista reconhece que o Senhor o tirou fora da situação de crise, de morte iminente de quem estava descendo ao fundo do poço. Sua vida estava em fase terminal, descendo à região dos mortos. Ele gritou e o Senhor o curou (30.3).
A invocação de cura de doença indica que ele está consciente de que sua doença não é apenas arbítrio de Deus, mas também pode ser resposta a sua atitude de presunção (30.7). Nesse sentido, a cura inclui também o perdão dos pecados e a reintegração na comunidade dos justos. A seguir, o salmista conta o passado antes da doença, lembrando sua segurança e prosperidade: “Eu dizia na minha prosperidade, jamais serei abalado” (30.7). Quando tudo vai bem, facilmente as pessoas se esquecem de Deus, mas quando vêm crise e ameaça, a reação é imediata: “A ti, Senhor, clamo, imploro graça, ó Deus, meu salvador” (30,9). “Escuta, Senhor, tem piedade de mim, ajuda-me” (30,11).
A cura aconteceu no aspecto físico. O Senhor impede a morte, a descida ao scheol. Porém acontece também a cura em âmbito espiritual. O salmista é curado de sua presunção e falsa segurança. Torna-se humilde e agradecido. Reconhece que o Senhor restitui a vida. A doença foi interpretada como uma advertência no momento da ira divina para corrigir. A cura espiritual aparece na capacidade de transformar os conflitos da vida em fonte de espiritualidade, dando novo significado à existência.
Joenildo Fonseca Leite
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