4. Modelos explicativos e estratégias de cura
Como falar de cura e libertação à luz dos relatos de cura dos evangelhos, diante do modelo biomédico, empírico, da medicina ocidental? É importante clarear os modelos explicativos da doença no primeiro século e o modelo atual, científico. Segundo qual perspectiva o modelo cultural com uma hermenêutica teológica, em nossos dias, pode iluminar a prática da cura e dar-lhe sentido? Para esta reflexão, sigo o estudo de Santiago Guijarro Oporto (“Relatos de cura e antropologia”, in AGUIRRE, 2009, p. 249-270), que apresenta uma chave interpretativa dos relatos de cura à luz da antropologia médica.
Por trás das diversas formas de entender a doença e de reagir diante dela, há um modelo explicativo. Sua função é oferecer uma explicação da doença, servir de guia na hora de escolher as diferentes terapias disponíveis e dar sentido à doença do ponto de vista pessoal e social. O modelo explicativo é o que determina quais sintomas são importantes e quais não são, e como devem ser interpretados e tratados (cf. AGUIRRE, 2009, p. 256). O entendimento da patologia como doença é, portanto, um processo cultural. Todas as culturas possuem moldes para perceber, entender, explicar e tratar os sintomas (idem, p. 257).
A estratégia terapêutica é o procedimento seguido para tratar uma doença e obter a cura. Tal entendimento da doença depende do modelo explicativo popular da medicina do século I no Mediterrâneo, enquanto nosso entendimento depende do modelo em que se sustenta o setor profissional da medicina ocidental. Daí a importância de relacionar o processo de cura no tempo de Jesus com o processo de cura como é explicado pela medicina ocidental (idem, p. 259).
O quadro a seguir resume as principais caraterísticas de ambos os modelos (idem, p. 260):
Modelo biomédico (empírico)
Entidades patológicas: lesão ou disfunção somática ou psicofisiológica (a disfunção é entendida como patologia).
Estrutura de relevância: são relevantes os dados que apresentam uma desordem somática.
Procedimentos de identificação: revisão dos sistemas; testes de laboratório.
Meta da interpretação: diagnóstico e explicação.
Estratégia interpretativa: examinar dialeticamente a relação entre os sintomas e as desordens somáticas.
Objetivo terapêutico: intervir no processo da doença somática.
Modelo cultural (hermenêutico)
Entidade patológica: universo de sentido, a doença percebida pelo paciente (a disfunção é entendida como doença).
Estrutura de relevância: são relevantes os dados que revelam os significados da doença.
Procedimentos de identificação: avaliar os modelos explicativos; decifrar o campo semântico.
Meta da interpretação: compreensão.
Estratégia interpretativa: examinar dialeticamente a relação entre os sintomas (texto) e o campo semântico (contexto).
Objetivo terapêutico: tratar a experiência do paciente: fazer entender os aspectos ocultos da realidade da doença e transformá-la.
O modelo biomédico é apto para entender a doença e a cura no setor profissional da medicina ocidental, mas é pouco relevante quando aplicado aos casos em que a doença é entendida e vivida segundo certos padrões culturais diferentes, como acontece nos relatos de cura e libertação nos evangelhos. Para os evangelhos, é mais útil o modelo cultural (p. 260).
Naquela cultura, Jesus e os primeiros cristãos pensavam que a origem da doença e da saúde estava em Deus (cf. Ex 15.26). Embora no relato da cegueira, por exemplo, não se mencionem as causas, podemos supor que eles a atribuíssem à ação de um demônio (cf. Mt 12.22) ou talvez a um pecado pessoal herdado (cf. Jo 9.2). Esse era o pano de fundo comum na cultura e religião da época (p. 263). Portanto, no caso da cura do cego de Jericó, são mais significativos os dados que revelam o significado da doença que a cegueira em si mesma.
O relato é um exemplo didático com o objetivo de instruir os discípulos de que a cura da cegueira significa (no contexto da seção de instrução dos discípulos: Mc 8.3-10.52) a cura dos próprios discípulos. O texto tem em vista apresentar o modelo do verdadeiro seguidor de Jesus, que compreende as exigências do seguimento e assume suas consequências. No caso, o que era cego, curado pela fé, é capaz de jogar o manto e ir atrás de Jesus. Na verdade, a cura aconteceu no âmbito da compreensão dos discípulos do que seja o seguimento; o médico Jesus atuou junto com o paciente. A cura veio da fé daquele que era cego, resultando em uma transformação na sua vida. Desse momento em diante, com a nova visão, mendicância, exclusão e desprezo ficam para trás. Ele é discípulo integrado na vida do povo, ciente do caminho que deve tomar.
Em alguns dos relatos que analisamos, o aspecto da fé das pessoas curadas pode parecer, segundo a visão da medicina científica atual, apenas uma forma de explicar a cura, um dado cultural da época. Porém a fé é existencial. O ser humano é essencialmente religioso e, em todos os tempos e lugares, há quem atribua tanto a doença como a cura à intervenção de Deus. Há quem passe pela doença e, na sua visão de fé, a interprete como uma prova e sinal divino que o levem a uma mudança de vida. Há quem, acometido de doença mortal, após gastar todos os bens com médicos, recorra a uma intervenção milagrosa. A ajuda, os cuidados paliativos e a assistência religiosa trarão bem-estar, paz de espírito ao doente, a fim de lidar com sua situação. A cura e a libertação abrangem o cuidado pela pessoa, pelo seu bem-estar físico, espiritual, social, até nos momentos derradeiros da existência.
No contexto cristão, toda cura ou tratamento feito com espírito de abnegação e caridade evangélica têm valor de salvação e são sinais do reino futuro de paz, vida plena, saúde. O processo de cura passa pelos modelos biomédicos da medicina moderna, que, sempre mais desenvolvidos, proporcionam maior longevidade com qualidade de vida.
O profissional da saúde tem o compromisso de promover a vida e defendê-la com os recursos disponíveis. Deus fez o médico e o remédio. Mas a graça divina supõe a natureza humana. Deus age não de forma mágica, como se acreditava no tempo de Jesus, quando havia muitos milagreiros. Ele age por meio dos recursos humanos, no desenvolvimento e descoberta de novas técnicas. Todo desenvolvimento humano para o bem e defesa da vida é dom de Deus, pois Deus coopera com aqueles que fazem o bem e promovem a vida. Na comum expressão “graças a Deus”, após bem-sucedida intervenção cirúrgica, o médico atribui sua habilidade a um dom de Deus. Nesse sentido, expressa um significado mais profundo, um sentido espiritual.
Conclusões
1. Cura e libertação na Bíblia são parte essencial do plano de Deus. Os diversos relatos de cura, tanto no Antigo como no Novo Testamento, são sinais de que o Senhor intervém na história e escuta a súplica dos doentes. A história do povo da Bíblia, como também as de outros povos, com suas histórias de curas, com seus meios terapêuticos, revelam a luta contra as doenças na busca incessante de cura e bem-estar. Ser curado, especialmente nos relatos que analisamos, significa o pleno restabelecimento da pessoa, o resgate de sua dignidade de ser humano e sua reintegração no serviço à comunidade. Os curados tanto proclamam o que aconteceu de bom em sua vida (cf. Mc 5.18-20) como se engajam numa missão e serviço (cf. Mc 1.29-30; 1.43).
2. A cura e libertação abrangem a pessoa na sua totalidade, pois saúde é bem-estar físico, psíquico, espiritual e social. A cura e salvação da pessoa, no sentido cristão, são mais que o restabelecimento da saúde física: operam na pessoa nova vida, novo sentido, que transcende a vida presente e a projeta na vida eterna. Eis a vida plena de quem crê que transcende a morte. Nesse sentido, para nós, cristãos, se nesta vida cremos que Jesus morreu e ressuscitou, também com ele, na morte, ressuscitaremos para uma vida nova (cf. Rm 6.5.8). A vida nova de ressuscitados já está presente naqueles que vivem neste mundo na fé e na esperança. Paulo diz: “Vocês ressuscitaram com Cristo, por isso busquem as coisas do alto” (Cl 3.1). Isso não significa fuga do mundo, mas compromisso com o projeto de Deus de transformar a vida presente mediante a libertação dos males e doenças. Assim vai acontecendo a transfiguração do mundo, com a diminuição da dor, da doença, do sofrimento.
3. Curas e libertações acontecem na aplicação dos recursos modernos da medicina, e não apenas na crença de intervenção mágica de milagreiros e exorcistas, como ocorria no primeiro século da era cristã. A fé verdadeira se torna visível na ação e no planejamento. Deus atua na história, na ação do médico e no efeito dos remédios. A graça da cura opera segundo a natureza, seguindo a evolução cultural e científica da humanidade. Deus deu ao ser humano inteligência para descobrir técnicas terapêuticas e novos remédios para fazer frente ao desafio das enfermidades. Deus se revela hoje nos sinais dos tempos. Vemos a intervenção dele no horizonte da teologia da criação.
4. Jesus curou muitos doentes das mais variadas enfermidades e deu aos discípulos a missão de fazer o mesmo. Inspirados no cuidado de Jesus com os doentes, os cristãos, especialmente os profissionais da saúde, encontram o sentido profundo do cuidado e atenção aos doentes e do exercício da medicina. A mística cristã do cuidado caracteriza-se pela compaixão e pelo modo humano de tratar a pessoa doente.
5. A cura física é seguida também da cura espiritual, que liberta a consciência do pecado. A cura espiritual inclui o perdão a si próprio, mediante a aceitação da própria condição humana, e o perdão de Deus, que torna a pessoa justa. A experiência da gratuidade divina que cura e liberta transcende a cura física e produz na pessoa bem-estar e paz espiritual vindos de Deus. Nesse nível a fé é fundamental, tanto para quem está doente como para quem trata o doente. Na Igreja primitiva, o cuidado dos doentes era uma preocupação pastoral que certamente seguia a prática dos discípulos de Jesus de orar e ungir os doentes (cf. Mc 6.13). Esse cuidado, que torna presente o gesto curador de Jesus, está na missão da Igreja.
Referências
AGUIRRE, Rafael (Org.). Os milagres de Jesus: perspectivas metodológicas plurais. São Paulo: Loyola, 2009.
BARBAGLIO, Giuseppe. Jesus, hebreu da Galileia: pesquisa histórica. São Paulo: Paulinas, 2011.
BERGER, Klaus. É possível acreditar em milagres? São Paulo: Paulinas, 2004.
CINÁ, Giuseppe; LOCCI, Efisio; ROCCHETTA, Carlo (Org.). Dicionário interdisciplinar da pastoral da saúde. São Paulo: Centro Universitário São Camilo: Paulus, 1999.
GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos 1,1-8,26. Salamanca: Sígueme, 1986.
HERMANS, Michel; SAUVAGE, Pierre (Org.). Bíblia e medicina, o corpo e o espírito. São Paulo: Loyola, 2007.
MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. São Paulo: Paulus, 1992. (Coleção Grande Comentário Bíblico.)
PAGOLA, Antonio. Jesus, uma aproximação histórica. Petrópolis: Vozes, 2010.
PAULO VI. Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi. Petrópolis: Vozes, 1976.
SCHIAVO, Luis; DA SILVA, Valmor. Jesus milagreiro e exorcista. São Paulo: Paulinas, 2000.
THEISSEN, Gerd; MERZ, Annette. O Jesus histórico: um manual. São Paulo: Loyola, 2004.
[1] Conforme o IBGE, em 2012 a expectativa de vida no Brasil era de 74,6. A última estimativa da expectativa de vida anunciada no Jornal Nacional (1º dez. 2014) é de 71 anos para os homens e 78 para as mulheres.
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